17.4.17

"2084, O fim do mundo", de Boualem Sansal (primeira parte)

 No prefácio da sua obra, 2084 O fim do mundo, Boualem Sansal, de origem argelina, avisa que "É uma obra de pura invenção, o mundo de bigbrother que eu descrevo nestas páginas não existe e não tem razões para existir no futuro”

Tom irónico, infelizmente, para descrever um mundo que parece cada vez mais possível, senão mesmo real em alguns pontos do planeta, sendo o caso, para não pensar muito, do Médio Oriente ou da Coreia do Norte.

Na obra, os caracteres “2084” são apenas uma inscrição no topo de um edifício, tal como “1984” na obra de Georges Orwell, de facto não representam nenhuma data, mas para nós leitores é uma data suficientemente próxima para compreender que é um alerta para as sociedades ocidentais e para todas as democracias que assim se reconhecem; apresenta-se como uma distopia na linha de Orwell, num futuro bem próximo, 2084. 

A história de um mundo, Abistão, onde reina uma única religião com um Deus único, Yölah, e o seu delegado na terra, Abi. Este mundo único, sem fronteiras e sem inimigos, nasceu de uma Guerra Santa e vive fechado em si mesmo numa ditadura religiosa, num mundo apocalítico que lembra Madmax, sem ontem nem amanhã. Um dia Ati, um homem humilde e ignorante, sente coisas e é assolado por perguntas sobre este mundo. Não entende como o Abistão, sendo um mundo único, pode ter fronteiras invisíveis. Se elas existem, o que se encontra depois delas? Sem sinais de revolta, também não compreende o destino de algumas caravanas de homens ditos inimigos que desaparecem sem deixar rasto. Numa longa viagem junto de peregrinos, encontra um homem, Nol, um arqueólogo que partilha com ele uma descoberta estranha de uma aldeia onde parecem terem vivido homens sem religião, uma outra civilização, e que desapareceram, deixando apenas o rasto da sua presença. Impõe-se uma nova questão: há outro mundo possível sem ser o Abistão? Mais estranho, já de regresso à sua vida normal, novamente feliz por já não questionar o que o rodeia, é anunciada pelo departamento de Informação a descoberta da primeira morada de Abi, o profeta, onde se deu a revelação do Deus Yölah, e que Ati associa rapidamente à aldeia descoberta por Nol…

Desejoso de compreender a verdade (não de a questionar), Ati decide sair da sua zona de conforto à procura de respostas e faz encontros estranhos num mundo marcado pela instrumentalização da verdade.

A ditadura religiosa descrita na obra apoia-se na mentira, na submissão de um povo a quem foi negada o direito de pensar. Assim como Orwell se inspirou no estalinismo e no nazismo para escrever a sua obra 1984, publicada em 1949, Boualem Sansal viu uma inspiração no Estado Islâmico, no terrorismo, mas também nas democracias em que o “politicamente correto” passou a ser a única forma aceite para pensar, uma tirania doce, consoladora. No ocidente também já há pequenos Abistãos.

Em Abistão, todos são obrigados a assistir às condenações coletivas, sendo as únicas distrações oferecidas ao povo. Para garantir a obediência, toda uma máquina de vigilância é instalada, há o Aparelho, a Fraternidade Justa, os V (“mestres da visibilidade, da ubiquidade e da telepatia”, mas que nunca ninguém foi capaz de identificar), os juízes da inspeção moral, os crentes justiceiros voluntários, os denunciadores…

O objetivo: manter a ordem estabelecida, manter os homens na ignorância.

Não se verifica nem se espera qualquer resistência ou revolta, pois nas ditaduras, as pessoas são felizes, infantilizadas, alimentadas nas suas necessidades básicas. Ao longo de toda a obra, há uma obsessão em descrever o funcionamento da máquina e a forma como ela se instala nas sociedades ávidas de controlo, de ordem e de referências, ao ponto de cair no grotesco, o que também é uma forma de relativizar “as verdades”. O grotesco atinge o seu auge quando se percebe que o Aparelho constrói os seus próprios guetos, zonas de não crentes, pois todo o regime absolutista só pode existir e manter-se se ele controla o país até aos seus pensamentos mais íntimos, forjando então uma oposição, antecipando-a para melhor a controlar.

“Ser o seu próprio inimigo, é a garantia de ganhar sempre”, “Para que as pessoas acreditem e se agarrem desesperadamente à sua fé, é necessária a guerra, uma verdadeira guerra, que produz mortes em grande número e que nunca acabe, e um inimigo que não se vê ou que vemos por todo o lado sem o ver em lado nenhum.”

Embora peque pela construção das personagens cuja densidade psicológica deixa a desejar, a obra coloca questões merecedoras de reflexão, oferece linhas perturbadoras sobre o mundo que construímos.

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