Dois livros de história, duas ficções e um livro de entrevistas, nenhum editado este ano, constituem o top 5 das melhores leituras N€B deste ano de 2016.
Stoner - John Williams
A arte de fazer do relato de uma vida banal uma história inesquecível é o ofício que John Williams abraça com um talento inesperado neste livro de 1965, mas que apenas atingiu um justíssimo reconhecimento muito recentemente, depois de uma tradução da escritora francesa Anna Gavalda. William Stoner é o filho de agricultores do Missouri destinado por defeito à vida da lavoura, mas que os estudos acabam por transformar em professor de inglês da universidade de Columbia e que tem uma vida em essência tão igual à da maior parte de nós, com os seus ocasionais sucessos e episódios de felicidade, mas em que são os momentos de infortúnio e as decisões infelizes que acabam por deixar a marca mais visível. Muitos dirão que, na sua banalidade, a vida de Stoner foi tristíssima, o casamento infeliz, a carreira marcada pelas tensões próprias da competição entre pares e as frustrações impostas pelos condicionalismos da vida em sociedade. Mas, por outro lado, ele teve tudo o que podia ter feito uma vida feliz: escapou à guerra, teve toda a vida emprego estável, casa própria, e até muito perto do fim uma saúde perfeita! Não havia, portanto, muito mais para desejar... e no entanto, a história é realmente triste! Ou seremos nós que, instintivamente, somos demasiado exigentes e queremos que a vida seja algo que ela não é?! A história de Stoner, relatada com a escrita simples e certeira de John Williams, confronta-nos diretamente com esse que é o problema central da arte de saber viver: graduar devidamente as expetativas à realidade. E esse é, quanto a mim, o maior trunfo deste livro maravilhoso!
KL - Nicolaus Wachsmann
São poucos os locais históricos onde possamos ir que sejam mais exigentes do ponto de vista emocional do que o campo de concentração de Dachau, perto de Munique. No espaço outrora ocupado por aquele que foi o primeiro konzentrationslager (KL) de entre os 27 principais que chegaram a constituir o complexo concentracionário das SS, podemos, tanto quanto é possível, imaginar os horrores daqueles tempos medonhos, graças à reconstituição muito detalhada que o governo da Baviera levou a cabo no local. Entre 1933 e 1945 passaram pelos campos 2,3 milhões de seres humanos, estimando-se que quase 3/4 tenham perdido a vida. É a história de como os nazis e em particular as SS passaram de uma ideia originalmente inglesa de prisões a céu aberto, destinadas a controlar inimigos políticos, a locais de morte em escala industrial que constitui o assunto deste livro avassalador. O resultado é um documento imprescindível para se perceber como basta um grupo de fanáticos cegos pelo ódio para fazer tábua rasa de todos os resquícios de humanidade de um povo inteiro e aniquilar todos aqueles que não encaixam nas normas que gizaram para estipular os que merecem viver.
Gente do Passado - Douglas Smith
À entrada do ano em que passa um século da revolução bolchevique (que curiosamente, começou em novembro de 1916), eis um livro notável para avaliarmos os acontecimentos do ponto de vista dos perdedores. A "gente do passado" eram, nos anos que se seguiram a guerra civil russa, os aristocratas, nobres e ricos que foram o principal alvo da revolta bolchevique e que continuaram, até à morte de Estaline, em 1953, a ser objeto de perseguições e extermínio. No final, da classe privilegiada do tempo dos czares muito poucos escaparam e todos acabaram na pobreza e na mais completa indigência. O autor, o historiador canadiano Douglas Smith, recorre a numerosa correspondência, diários, memórias e entrevistas de membros de duas famílias numerosas da aristocracia russa que acabam por ser apanhadas no turbilhão dos acontecimentos e cujos destinos se cruzam, por diversas vezes, nos infortúnios e nas mortes nos anos que se seguiram à vitória dos homens de Lenine. E é angustiante constatar como tanta infelicidade e dor, que acabou por atingir numerosos inocentes, acabou, no fundo, por se tornar inevitável pela cegueira e sobranceria de quem se julgava acima de todos os outros: os próprios nobres e aristocratas! O livro tem ainda o trunfo de colocar os males deste nosso mundo de finais de 2016 perante um perspetiva dissipadora: há 100 anos os mortos e os espezinhados contavam em milhões por toda a parte... e o pior ainda estava para vir!
Submissão - Michel Houllebecq
Michel Houllebecq é talvez o escritor francês contemporâneo mais conhecido em todo o mundo, muitas vezes mais pelas polémicas tiradas com que premeia entrevistadores ou por um culto da bandalheira e da feiosice com que se apresenta em público, mas também, certamente, por uma escrita sedutora e muito correta e um estilo mordaz. Os seus livros estão cheios de heróis narcisistas, homens na meia idade desencantados com a vida, com os corpos a transbordar de azedume e um espírito permanentemente complexado capaz de tornar a vida infinitamente mais difícil do que o que ela já é. Houllebecq tornou-se também famoso por uma certa aura de profeta, por fazer declarações especulativas que acabam às vezes por ter uma contraparte validada pela prática. É lembrada por vezes a descrição que faz no excelente Plataforma, o livro que publicou em 2001, e que tem nos atentados de Bali, em outubro de 2002, uma sinistra confirmação. Submissão foi o livro editado na semana do massacre do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, com uma 1ª tiragem muito respeitável de 150000 exemplares. Houllebecq tinha entrevistas agendadas para essa semana fatídica e como já andava a preparar o terreno com umas tiradas arrojadas, teve que fugir por causa dos terríveis acontecimentos na redação do jornal satírico o que, como é natural, só aumentou a curiosidade em torno do livro. O protagonista é um professor da universidade de Paris Sorbonne 3, em tudo idêntico ao personagem padrão do escritor, a braços com os acontecimentos que decorrem na campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 2022 e nos que têm lugar posteriormente. Nessa altura, Marine Le Pen perde para a chamada Irmandade Muçulmana e a França ganha um presidente pró-islão. O quadro que se apresenta é tão inverosímil (p.e., a França alia-se à Arábia Saudita, que passa a financiar o sistema educativo francês, com tudo o que isso tem de efeito ao nível social, cultural e na vida quotidiano dos cidadãos) que somos levados a pensar que jamais se concretizará. Mas nem é isso que está em causa, verdadeiramente, tanto mais que verosimilhança é algo que se tem tornado muito difícil de definir nestes tempos de pós-verdade! Tal como 1984 ou Admirável mundo novo, para citar dois exemplos, não se tornaram famosos por serem premonitórios, também neste Submissão o que parece contar é a arte do escritor para nos apresentar um cenário e descrever a forma como os indivíduos reagem aos condicionalismos. E Michel Houllebecq faz isso particularmente bem!
O fim do homem soviético - Svetlana Aleksievitch
Anda toda a gente banzada com a pujança com que Vladimir Putin se tem vindo a afirmar na cena internacional e a forma como a Rússia regressou em força aos noticiários do mundo inteiro praticamente todos os dias. Ora, quem ler este livro da escritora bielorrussa, prémio nobel de 2015, vai conseguir compreender como o russo está muito menos preocupado com o bem estar económico ou com a qualidade de vida individual do que com a grandeza da mãe pátria. Para a maioria dos russos entrevistados para este livro de crónicas pessoais a Perestroika foi uma catástrofe e Gorbatchov e Ieltsin dois consumados bandidos. E isto por dois motivos essenciais: com o comunismo não havia a sensação de que a maioria era deixada para trás pelos chicos espertos e pelos corruptos (todos mal, todos iguais, cada um bem); com o comunismo a Rússia era um mundo à parte, diferente de todos os outros e, acima de tudo, temida por todos! O russo tem a mania das grandezas e gosta de sentir que vive numa terra especial. Precisa de quem dirija, de quem dê ordens e seja respeitado dentro de fronteiras, mas acima de tudo no estrangeiro. O russo admira quem instila terror e sente-se órfão (infeliz, mesmo) se não tiver à cabeça quem faça tremer o mundo com a sua voz de comando. Está disponível para sacrifícios que mais nenhum povo tolerará desde que lhe apresentem um chefe como Putin. Essa é a lição que o Fim do homem soviético nos deixa com uma clareza exemplar.
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