24.8.18

Viagem à Grécia

A partir do momento em que, no início do século XX, a química nos deu o processo industrial de produção de amoníaco, que permitiu a agricultura infinita, e depois a física disponibilizou a bomba nuclear, colocando os governantes e os decisores em cheio na frente de batalha, o único motivo para que uma nação democrática passasse por apertos financeiros que obrigassem os seus a baixar do limiar da dignidade passou a ser a corrupção. Por motivos que não cabe aqui enumerar, a corrupção está muito entranhada no código genético de alguns povos e entre os seus mais perniciosos efeitos contam-se a capacidade de abalar a democracia e o sistema de justiça, a propensão para produzir quantidades de dívida exorbitantes e injustificadas e a inevitabilidade de conduzir a mortes catastróficas e de origem aparentemente insondável (vimo-las, por exemplo, no ano passado em Portugal, e este ano na Ática e em Génova).

Entra-se na Grécia ao som do Sirtaki, a dança de Zorba, esgalhada por Anthony Quinn para o filme de 1964 e sentimo-nos imediatamente de bem connosco próprios. Não sei se será por estarmos num país europeu que, segundo tudo indica, se pôs em pior estado do que nós, ou simplesmente por estarmos a pontos de ver a manjedoura onde foi parida a democracia, mas a verdade é que nos sentimos bestialmente, com o coração a palpitar todo laroca e com uma desenvoltura de que já não o pensávamos capaz! Temo que seja mesmo complexo de superioridade por estes se terem esbardalhado mais do que nós e, por momentos, lamento pela minha falta de empatia, até porque já estou convencido de que os gregos têm tão pouca consciência dos malefícios da corrupção como nós!


Durante séculos foi por este lado que milhares de pessoas acederam ao Partenon e nós hoje, olhando para as suas ruínas, tudo o que podemos é imaginar que sensações terão experimentado ao ver o mais espantoso edifício que saiu da mente humana. Para além da beleza e equilíbrio da estrutura, da pompa e solenidade daquele lugar tão marcadamente presente no imaginário de todos nós, parece-me a mim que há algo nesta imagem da Laura a refletir frente à fachada do Partenon que suplanta tudo o resto. Este foi o primeiro edifício democrático da história porque não foi construído por um rei ou um ditador, mas sim no seguimento de uma votação maioritária dos cidadãos da Ágora por proposta de Péricles. E esse passo gigantesco para a humanidade vale bem que sobre ele reflitamos em silêncio no sentido de perceber quanto verdadeiramente evoluímos nestes 2500 anos.


Um dia Atena e o tio, Poseidon, apresentaram-se na Acrópole reclamando os favores da populaça. Fizeram campanha porque só um poderia ser o escolhido e distribuíram presentes: Poseidon assestou com o tridente no chão e fez um buraco de onde brotou água doce; Atena fez a magia que os deuses sabem fazer e do nada apareceu uma oliveira. O povo hesitou e, como não se conseguisse decidir, resolveu fazer uma votação. Ganhou Atena que reuniu todos os votos das mulheres. Poseidon achou injusto perder por haver homens a menos e apresentou uma queixa a Zeus. Magnânimo, o pai dos deuses decidiu rapidamente e sem apelação possível: Atena seria a deusa da cidade, mas as mulheres, que não morriam na guerra e estavam sempre em maior número, deixavam de poder votar. E é por isso que a cidade se chama Atenas, e na democracia ateniense só os cidadãos podiam votar. O próprio Zeus o decretou.

O Partenon é a casa de Atena que também possuiu meio Erecteion. Porém, nas traseiras deste último edifício, considerado por muitos o mais singular da Acrópole, há uma dependência para Poseidon repousar. À entrada, ainda está o buraco deixado no chão pelo tridente do poderoso deus dos mares, para dentro do qual os atenienses (talvez mais os pescadores, digo eu) atiravam oferendas (hoje já ninguém tem nada para oferecer). No quintal continua a oliveira de Atena, reposta continuamente ao longo dos séculos, porque, claro está, nem os deuses do Olimpo têm a capacidade de fazer oliveiras imortais!







Durante séculos ninguém foi meigo com os gregos e eles andaram a levar pantufada velha de todos os lados. Quando finalmente se desenvencilharam, viram-se livres de ditadores e monarcas e aderiram à CEE. A partir daqui a história dos gregos é-nos familiar. Na década de 80 e 90 deixou de haver impossíveis e a Grécia, sem indústria e mais nada para oferecer a não ser o que os clássicos deixaram em herança, assumiu a pose de nação rica. Em 2004, ao mesmo tempo que Charisteas dava cabo de nós no Estádio da Luz, na Grécia os matulões rapavam o tacho com as obras para os JO de Atenas. Foi o fim.


Hoje, o grego parece resignado com a sua sorte, baixou os braços e já nem se apercebe que numa altura em que a humanidade tem capacidade para produzir em quantidades ilimitadas, não é possível que um povo inteiro acolha sem espernear a pena capital. Dizia-me uma grega que os que agora lá estão a governar, os do Syriza, não cumpriram muitas das promessas, mas, pelo menos, não são corruptos. Santa inocência, penso eu, se eles não são corruptos é porque são uma elite bem formada, mas a corrupção que conta, verdadeiramente, não é a dos políticos, mas a do povo. Ouçamos Nana Mouskouri:


A dada altura, alguém me explica que o ensino de grego clássico nas escolas deixou de ser obrigatório. A língua de Platão e Aristóteles vai desaparecer porque tem demasiados acentos e uma gramática muito complicada e nem os próprios gregos estão para matar a cabeça. Entretanto, meio milhão de jovens com formação superior estão emigrados, tendo sido substituídos por 2 milhões de refugiados maioritariamente sírios. Para além das ruínas de um passado que já não volta, Atenas pouco mais tem para oferecer (a praça Syntagma, ponto de encontro dos indignados dos primeiros tempos da crise, não tem a força galvanizadora de outras praças centrais de cidades muito menores, e aquelas manobras da pífia guarda de honra de magalas à porta do parlamento, tão apreciadas pelos turistas, mais não fazem do que contribuir para a depressão). A cidade congrega quase 40% da população do país e sob aquela luz magnífica de um dia de verão parece uma imensa floresta branca que se estende até ao mar. Lá em baixo estão os gregos, subitamente povo irmão no infortúnio, a quem tocou o azar de pagar mais caro pelos defeitos de fabrico da sua excelente invenção: a democracia.









Estamos em Corfú. Do outro lado do jónico fica a fronteira entre a Albânia e a Grécia. Em terra de Marias, connosco, a olhar o mar, está Urânia, uma grega de Cefalónia por onde passaremos a seguir. Os nomes gregos têm sempre um significado e Urânia significa céu. Um céu azul, quente e acolhedor como este. Mandamos vir um café grego e, como manda a lei, pomo-nos a conversar. O café é fortíssimo e de sabor entusiasmante, mas tem que ser bebido calmamente, ao longo de horas, sobre pena de nos empanturrarmos de borra. 


Urânia pergunta-nos pelos incêndios de Portugal em 2017, como foi que lidamos com uma tragédia tão grande, o que se passou a seguir. Ainda está em choque com os acontecimentos de Mati, onde tem família a viver. Conta-nos que um conhecido, pai de família de 4, filmou em direto o início do incêndio. A dada altura, comenta que se o fogo, que está bastante longe, os atingisse seria o fim do mundo… Urânia faz uma pausa e engole em seco! Morreram todos e o vídeo está no Youtube. Ficamos a olhar o mar. Urânia desculpa-se, afinal de contas estais de férias, e nós não temos nada para lhe dizer. 

Aconselha-nos a ir ver a caverna de Melissani e quiçá Ítaca, ao largo de Cefalónia (vamos à primeira, mas a pátria de Ulisses só a conseguimos ver da outra margem) e, claro, percorrer a ilha que é das mais autênticas ilhas populosas da Grécia. Confirmamos. 






Mas depois voltamos a falar de coisas tristes, conta-nos como muitos gregos já não suportam a criminalidade crescente em Atenas e abandonam a cidade outrora segura. Fala-nos do desemprego brutal e do facto de muitos dos que trabalham terem de o fazer mais de 10 horas por dia para ganharem 500 euros. A gasolina custa 1,90 euros e o IVA está a 24%. A Grécia vive neste momento do turismo, mas os tempos mudaram e agora temos um turismo massificado e com margens muito apertadas, de modo que ninguém está a ver como é que a situação vai melhorar. Não há queixume nem revolta nas palavras de Urânia… só preocupação e alguma tristeza. Os gregos estão a fazer pela vida como nós e como nós sabem que foram ludibriados, mas reconhecem que estão condenados a uma luta longa e exigente. Basicamente, nós e Urânia trocamos galhardetes e desabafamos. Cada um tem os seus problemas e a vida não é mais do que essa luta permanente para os resolver: olho o mar e lembro-me de Xenofonte e da sua maneira indiscutível de olhar o mundo: se levas porrada é justo porque te puseste a jeito; mas se o outro estiver fraco estoura com ele, rouba-o quanto puderes e incendeia-lhe a aldeia (Cristo viria, mais tarde, com essa mensagem revolucionária que Xenofonte acharia por certo risível: ama o próximo e dá a outra face). 

Gostamos muito de Corfú, mas é demasiado veneziano para o efeito que pretendíamos. Argostoli pareceu-nos mais autêntico, ainda que menos festivo, com as suas paisagens belíssimas e que têm a diferença de que andamos à procura. 














Há uma história que eu sempre conto a abrir. Começa com uma questão colocada à plateia: quanto vale o perímetro da Terra? Na maior parte das vezes sinto que deveria começar por perguntar se alguém sabe o que é o perímetro ou até se há quem ignore que a Terra é redonda, porque o costume é ficar tudo calado como beneditinos extraterrestres a quem perguntaram o estado do tempo antes do big bang, mas depois há sempre alguém que arrisca dizer que teríamos que o medir! Mas, medir como? - insisto eu. Com uma fita métrica gigante?, circum-navegando o planeta como fez Magalhães?, ou numa nave espacial?, sugiro e, para todas as hipóteses, apresento objeções. Deixo o tempo correr e o silêncio instalar-se até ao limite do desconforto. Deixo apurar até que a maior parte deles começa a pôr em causa a razoabilidade daquela aula e depois disparo solene: pois bem, amigos, houve um grego que determinou o perímetro da Terra há 2200 anos atrás e fê-lo praticamente sem sair de casa. Chamava-se Eratóstenes e fez assim… blá, blá, blá! Foi a estes pontos que chegaram os gregos e nós só podemos imaginar onde estaria a humanidade se eles não se tivessem deixado vencer. Talvez os gregos de hoje não tenham a disponibilidade mental dos avós, mas o que a gente destas paragens fez no passado enche-me de orgulho a mim que sou de muito longe.



Somos astronautas de uma nave espacial que viaja entre mais de 1500 planetas; somos argonautas dos tempos modernos e entramos em Mykonos de cabelos ao vento que agita o Egeu e com a cabeça atulhada da bouzouki de Giorgos Zampetas. 


É outro mundo. O grego destas paragens está-se nas tintas para a crise e tudo o que quer é festarola e andar de lambreta com o vento pela venta, protegido que está pelo turismo mais endinheirado. A terra é, de facto, acolhedora, quente, galvanizante e não deixa espaço para tristeza.






O grego tem uma fé tão genuína como a nossa e a igreja ortodoxa congrega 90% da população. Chegamos a 15 de agosto, dia da Assunção da Virgem, festividade que por cá tem a mesma solenidade que o Natal ou a Páscoa. É festa rija e nós subimos ao mosteiro de Ano Mera para nos podermos inteirar dos acontecimentos. É um mosteiro pequenino e singelo como são todos os ortodoxos e, evidentemente, ficamos à porta barrados pela multidão. Ficamos admirados com o facto de quase todas as casas terem a pequena capela, tipicamente branca e com o telhado azul. É fé, asseguram-nos, mas também é verdade que a mesma legislação que impede construções grandes, contempla a possibilidade de anexar um quartinho extra à capela: sempre é mais uma toca onde se pode enfiar um ou vários turistas.

















Ali ao lado fica a pequena ilha de Delos, lugar de grande religiosidade no tempo dos clássicos, onde desde há 2600 anos é proibido nascer ou morrer, pelo que ninguém lá fica a dormir para não se correr o risco de afrontar Apolo.





É impossível resistir à água azul (ou será verde?) do Egeu e é de ficar banzado com aquelas pequenas praias de postal. As praias e o mar! Já chega disto, amigos: vou de férias outra vez! Desfrutem!







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