22.8.18

Viagem a Itália

Se queremos ser honestos e começar pelo início, então esta história de publicar histórias na Internet remonta a Marconi. Marconi nasceu num palácio, justo no centro de Bolonha, e teve a feliz ideia de inventar a comunicação de voz sem fios, há quase 120 anos. Mas a rádio de Marconi não teria existido se um século antes não tivesse vivido Luigi Galvani, que dedicou uma parte substancial da sua vida a tentar provar a existência da eletricitate animale em experiências para estômagos fortes realizadas no Teatro Anatómico. Galvani estava errado e consta que morreu de tristeza, mas isso não impediu que a História lhe fizesse justiça, e hoje falo destes dois porque finalmente pude-lhes visitar a terra natal.












Quando o calor aperta, o italiano enfia-se no buraco e as ruas ficam entregues aos turistas, mas depois do pôr-do-sol salta cá para fora, mas jamais aceitará fazê-lo se não for nos trinques, quero eu dizer, tirando esta juventude de agora que é toda uniformizada, o italiano vero (e a italiana, bem entendido) pode ter os ossos todos escavacados pela idade e a ceroula selada, mas quando se apresenta à sociedade vem aperaltado para abalar. No passado, a ninguém passaria pela cabeça causar sensação à base da farpelada e, por isso, aqueles que tinham arcaboiço para tanto construíam torres altíssimas em casa. Em Bolonha existiam mais de duzentas e deve ter sido espetáculo digno de ser visto, mas hoje temo-nos de contentar com duas e uma está torta!












Se eu fosse a enumerar a gente famosa que passou pela Universidade de Bolonha, que é só a mais antiga da Europa, nunca mais daqui saía, mas permitam-me que liste mais quatro só para ilustrar: Copérnico, Malpighi, Armani (o costureiro) ou o papa Bórgia. O ex-árbitro Collina nasceu na cidade, tal como Lúcio Dalla, autor de Caruso, de que Luciano Pavarotti fez uma versão memorável, ou o realizador de cinema Pier Paolo Pasolini. 


Por falar em cinema, tocou-nos um petisco absolutamente inolvidável e achamos que dificilmente teremos melhor serão nos tempos que aí vêm. A coisa conta-se em três tempos. Depois de uma pratada de pasta fresca al dente regada com o original molho bolognese, e na companhia de gente gira e impecavelmente artilhada, fomos à Piazza Maggiore onde decorria o festival de cinema ao ar livre da cidade. A coisa tem uma envergadura que roça o apoteótico e, com uma noite de trovoada dantesca (felizmente, sem chuva), foi tocante ver o recinto superlotado para ver Non ci resta che piangere. O filme, rodado em 1984, tem Roberto Benigni e Massimo Troisi a improvisarem do início ao fim numa história (obviamente inventada na hora) em que, fruto da trovoada, são recambiados para o século XV e acabam à procura do Cristovão Colombo para que ele não vá descobrir a América de modo a que se evite o imperialismo americano. Nos anos 80 deve ter ficado tudo boquiaberto; em 2018, pela parte que me toca, adorei! 


Deixem-me ainda que vos fale da lição de educação pura com que nos presentearam antes da projeção. Não sei se sabiam, mas Bolonha, que hoje praticamente não tem um riacho, já teve canais que a punham ao nível de Veneza. Foram construídos a partir do século XII para favorecer o comércio e ligavam a cidade ao rio Pó. Na década de 60 do século passado resolveram tapar tudo e fazer estradas. Arre, povo mais industrioso e trabalhador!








Os de Bolonha têm a praia a uma hora de distância, em Rimini, terra de Federico Fellini e onde se passam parte das aventuras de I vitteloni, os inúteis do filme de 1953. A praia de Rimini é de uma extensão soberba, banhada pelas águas azuis e tépidas do Adriático e a cidade ainda consegue manter traços de uma certa aura de belle époque, apesar do comércio feroz de bugigangas e da pressão do turismo. Por exemplo, mantêm-se muitos dos hotéis familiares, não sendo comuns estes resorts de agora, e se nos conseguirmos concentrar o suficiente é possível que consigamos reviver aqueles tempos em que a rapaziada mirava o tornozelo e salivava pelo joelho. Claro que isso se passa tudo na nossa mente, no espaço de uma fração de segundo, porque a profusão de glúteos é tal que está acima das capacidades humanas manter a concentração por muito tempo. Nem mesmo em Rimini.







Chegamos a Parma, terra de leite, queijos, enchidos, e da falência mais estrondosa do Calcio. Pelo caminho passamos ao lado de Maranello, pátria da Ferrari, Módena terra de Pavarotti, sendo que um pouco mais a norte, os de Sant’Agata Bolognese aplicaram os seus talentos na construção de Lamborghinis. Por momentos, parecemos crianças numa loja de doces. Continuamos para cima em direção a Milão, capital do bom gosto e onde, entre monumentos avulso, pontificam duas catedrais ambas de aspeto mastodôntico: o Duomo e a de San Siro/Giuseppe Meazza. Com os Alpes em linha de vista, entortamos à direita e vamos até Veneza com parada em Verona, terra onde Shakespeare situou os amores desgraçados de Romeu e Julieta. A casa dela está lá e é lugar de peregrinação para gli innamorati! Talvez já tenhamos estado mais longe da bella vita!


A Itália é hoje o quarto país mais endividado do mundo, mas é uma dívida que nada tem que ver com a nossa ou a da Grécia, pois não é fácil dar com maior riqueza do que a que existe no cano da bota acima da Roma. A riqueza de Itália faz de nós brutos porque é sofisticada e autêntica; não é uma riqueza que cause inveja, mas sim uma sensação boa de orgulho e conforto por pertencermos à mesma espécie daqueles que a produziram. Em mais sítio nenhum a humanidade foi tão bem sucedida a criar algo a partir do nada como nesta terra sofrida e maturada ao longo de séculos de lutas e desgraças. 


A riqueza de Itália não é a riqueza dos que vendem petróleo, nem a dos conquistadores implacáveis. É, outrossim, o triunfo do génio humano que aprende e cria, constrói e inova, que gosta do que é belo e que adora mostrar que sabe o que quer e para onde vai. 


















Todos nós nos fartamos de ouvir falar de Veneza desde talvez a escola primária. Mesmo assim, da primeira vez que visitei a cidade, numa era pré-internet, vinha com aquela ideia feita da Ria de Aveiro, a Veneza portuguesa. O resultado foi ter-me apresentado na Piazzale Roma ao volante de um Fiat alugado numa de vamos lá ver os canais por alto sem pôr o pé no chão e seguir viagem. Quilhei-me bem e paguei com uma manhã na fila para arrumar o charuto e a coisa marcou-me. Veneza exemplifica porque é que os italianos foram tão bem sucedidos na criação de todo o tipo de riquezas. Durante séculos, cada estado teve que fazer pela vida, numa luta permanente para se superiorizar aos demais e todos o fizeram com uma abnegação tal que é difícil imaginar competidores mais ferozes: as guerras comerciais de hoje entre o Trump, a China e a Turquia são chichinha tenrinha quando comparadas com as inundações de hormonas que estavam em jogo havendo competidores como Florença, Génova, os Estados Papais, a Espanha, a Áustria ou a França. Veneza, que como todos sabemos começou por ser um pântano, com a área de uma cidade média, acabaria por lutar ombro a ombro com todos, tendo em alguns aspetos conseguido ir mais longe. Em síntese: andar à porrada é maravilhoso! E isto conclui a nossa reflexão histórica de hoje!





Agora literatura. De Veneza era Giacomo Casanova, conhecido mundialmente por no século XVIII ter feito a felicidade de um sortido variado e abundante de senhoras, mães de família e damas afins. No final da vida, Casanova lançou-se à obra de pôr as suas aventuras por escrito e acabou por redigir 3800 páginas em francês (Histoire de ma vie) de que há, na nossa língua, um apanhado, com tradução do Pedro Tamen (cerca de 1200 páginas de leitura compulsiva, ainda que se fique com pena de não haver o restante). Da Praça de S. Marcos é possível encontrar uma posição de que se consegue ver o telhado de chumbo do palácio Ducal. Foi por esse telhado que, em 1756, Casanova fugiu da cadeia, escapando ao fim de 16 meses a uma pena de 5 anos a que fora condenado por atentado aos bons costumes e por gostar pouco de ir à missa. O relato que ele nos faz do que passou na cadeira, a que se tinha acesso através da famosa ponte dos Suspiros, é de tal ordem marcante que consegue suplantar as descrições que nos deixou sobre a arte de galar. Para mim, a influência foi tal que passei umas horas em Veneza a pensar em Casanova e não foram os monumentos nem os canais que mais me atraíram, mas sim aquele telhado de chumbo. Pancas!





















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