Com cada vez menos tempo e mais labuta padeceu a leitura, que viu o tempo disponível ser cortado para um mínimo, que começa a roçar o limiar abaixo do qual é o próprio crescimento intelectual que acaba por ficar em causa. O problema é que se não se investe nesta área, não é possível crescer em conhecimento relativo e, sem isso, é dado adquirido que escafedemos na Bolsa quando os mercados se tornam um pouco mais agrestes. Neste ano, por exemplo, valeram-nos em grande medida leituras passadas, porque com o que levamos à prática bem nos tínhamos entalado e ficado sem conserto. Há, portanto, todo um trabalho de gestão do tempo que é preciso executar com precisão, de modo a chegarmos ao 31 de dezembro com um cesto de livros lidos que assegurem que não entramos em recessão ou, pior, depressão ou, ainda mais grave, senilidade!
Não se pode dizer que o ano tenha sido estupendo em termos de qualidade dos livros lidos, mas também é verdade que com a idade nos vamos tornando mais exigentes, ao mesmo tempo que vamos deixando lidos os títulos consensuais, fazendo da escolha de livros a ler toda uma arte de procura de preciosidades escondidas.
O melhor livro do ano entrou diretamente para 32º lugar do Top N€B geral e é da autoria do historiador escocês Niall Ferguson, de quem já conhecíamos outras obras merecedoras de atenção. Trata-se de Civilização, o Ocidente e os Outros (Civilização Editora, 2011) e conta-nos por que motivo o ocidente se transformou na civilização global dominante em deterimento de outras como, por exemplo, a chinesa, que teriam, aparentemente, melhores condições de partida.
Com um estilo fluído e enxuto, bastante bem documentado, sem ser demasiado superficial nem académico, Ferguson fornece-nos um conjunto de pistas que nos servem inclusivé para a nossa luta diária. No final, o sucesso do Ocidente acaba resumido em seis aplicações-chave decisivas (a que já nos referimos num post anterior): competitividade entre nações, revolução científica, estado de direito, medicina moderna, sociedade de consumo e ética no trabalho. Ferguson tem uma apresentação no Ted Talks sobre o assunto que aborda no livro, que vale a pena ver como complemento.
Numa altura em que a Europa corre o sério risco de se desagregar, não deixa de ser sugestivo que uma das teses do livro seja precisamente o facto de ter sido a profunda desunião entre os diferentes países europeus, que lutavam cada um por si, estabelecendo e rompendo alianças à velocidade a que mudavam os humores dos diferentes governantes, um dos fatores que levaram o nosso continente para o domínio global. Em tese, desunião leva ao sucesso, ao passo que a união e a ausência de conflitos conduz ao comodismo e à estagnação como sucedeu, lá está, com os chineses. No fim somos obrigados a refletir se não estaremos nós, os humanos, condenados a só ter sucesso individual se estivermos desunidos. Estará o Universo formatado para não passar de um jogo de soma nula em que o sucesso de uns só é possível se conseguido à custa da perdição de outros? E estaremos nós, os europeus, em vias de desmantelarmos a nossa união porque com ela não conseguimos manter o estatuto de líderes civilizacionais? Ou será que, por outro lado, é esta obsessão pela liderança, seja do que for, que nos está a tolher? Olhando para o passado e para o quanto nos custou tornarmo-nos na "Civilização" será que vale a pena voltar a pagar o preço de uma suposta liderança e de passarmos por líderes abdicando do conforto de nos sentirmos unidos? Perguntas que ficam em aberto no livro, mas que valem só por termos tido a possibilidade de as colocarmos a nós próprios. Até porque, pelo andar da carruagem, podemos perfeitamente, no nosso tempo de vida, vermo-nos na contingência de termos que optar por um ou outro caminho!
O segundo livro do ano foi a biografia de Casanova, História da minha vida, numa edição da Divina Comédia Editores, 2013.
Já falamos deste livro aqui e a verdade é que foi para nós um dos grandes acontecimento editoriais do ano. Já existiam em português alguns extratos da obra de Casanova, entre os quais a "História da minha fuga das prisões de Veneza", mas nunca se tinha ido tão longe na tradução para a nossa língua da epopeia de um sujeito que é acima de tudo conhecido como um competente galanteador. A tradução de Pedro Tamen também é bastante competente e a única chatice é que mesmo com esta colheita ainda só foi possível ter em português (pelo menos de Portugal) cerca de 1000 das mais de 4000 páginas que compõem o texto completo. Mesmo assim, o livro é um fresco dos três quartos finais do século XVIII europeu vistos pelos olhos de um homem que passou por grande parte do continente e esteve presente em muitos dos acontecimento definidores da nossa maneira de ser e de pensar. De Portugal, infelizmente, Casanova pouco mais refere do que ter sentido uns pequenos estremeceres do chão na prisão dos chumbos, onde estava no fatídico dia 1 de novembro de 1755, quando Lisboa foi destruída pelo tremor de terra. Mas é um gosto, apesar dos saltos que a narração vai dando, para cumprir o objetivo de ter a obra condensada em 25% do original, descobrir como o mundo de há 200 e tal anos atrás não é assim tão diferente do nosso, apesar dos gadgets sem os quais a vida atual quase parece impossível! Casanova não dispensa o jogo, nem a arte da negociação e do saber investir, e domina as relações humanas com uma competência que se torna uma lição segui-lo nas manobras que vai levando a cabo. Bem sabemos que 1000 páginas de leitura é uma empreitada que só se pode levar a cabo, nos tempos que correm, se houver lucro garantido. Ora, neste caso, o projeto vale cada minuto investido!
Numa passagem de Kaputt, Curzio Malaparte relata-nos o encontro que teve com Ante Pavelic, o ditador croata, no outono de 1941. A dada altura, Pavelic sentencia que o povo croata quer ser governado com bondade e justiça. E eu estou aqui para garantir a bondade e a justiça. Malaparte ouve-o enquanto observa um cesto de vime posto em cima da escrivaninha. Como a tampa estava um pouco levantada, via-se que estava cheio de mariscos, ao que parecia ostras tiradas das cascas. Pavelic apercebe-se do interesse do interluctor e, lavantando completamente a tampa do cesto, disse a sorrir, com o seu sorriso bom e cansado: É um presente dos meus fiéis ustacia. São vinte quilos de olhos humanos.
Kaputt significa quebrado, destruído, e parece certo que nunca estivemos tão perto de estar kaputt como nos anos desgraçados da segunda grande guerra. A experiência de repórter de guerra italiano, fazendo a cobertura dos acontecimentos, pelo lado do eixo, que serve a Malaparte para compor o seu livro, constitui um murro no estômago para todos aqueles que acham que pode haver um pingo de dignidade na guerra e que em última instância a racionalidade há de fazer do ser humano um animal menos feroz que o pior bicho da selva. Nada mais falso. O homem consegue sempre justificação moral para a pior e a mais cobarde decisão que seja obrigado a tomar pelas circunstâncias que se lhe apresentam. No final, como dizia Samuel Johnson há sempre o patriotismo que tudo submeterá: o patriotismo é o último refúgio de um canalha!
Kaputt de Curzio Malaparte (edição livros de bolso Europa-América, 1979) é a terceira melhor leitura N€B do ano.
Em ano de centenário da primeira guerra total, e quando parecem avolumar-se nuvens de tensão outra vez sobre a Europa, é bom recordarmos o testemunho de quem já passou por experiências que parece possível que ainda sejam olhadas como tendo qualquer coisa de aliciante: veja-se o caso dos jovens europeus seduzidos para a luta do estado islâmico. Malaparte, apesar de seguir de perto a quadrilha nazi, não é imparcial na guerra e tem plena consciência do lado pelo qual vale a pena lutar, talvez porque tem a bagagem intelectual suficiente para compreender que os horrores de que nos vai dando conta não são compatíveis com o ser pensante que nos costumamos considerar, mas não encontra muitos como ele e, mais do que a história da guerra contada por quem a viveu, é justamente essa tomada de consciência de como estamos tão perto da selvajaria que nos enche a mente depois de termos lido este livro. Kaputt, de Curzio Malaparte, entrou para o lugar 47 do top de leituras N€B.
Um bom 2015 de leituras e cinema para todos!
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