Enquanto o PSI20 se entrega à consolidação do brilharete que foi a conquista do castelo situado a 5400 metros de altitude, nós cá continuamos a ver se aprendemos umas coisas que nos ajudem a virar frangos com mais habilidade. Se é que nos entendem!
Claro está que o fracasso ou sucesso do índice no curto prazo está indexado às negociações que vão ter lugar mais daqui a pouco entre a Grécia e os seus credores, pelo que o assunto "dívida" continua a ser uma inesgotável fonte de aprendizagens acerca da forma como funciona a sociedade e, por inerência, os mercados financeiros.
De berço vimos formatados para pensar que a dívida nasce de uma necessidade do pobrezinho (mutuário), que é ajudado pelo gentil ricalhaço (mutuante) que lhe empresta umas lecas a prazo em troca de uma compensação sob a forma de juros. A dívida é um favor que o mutuante faz ao mutuário, e o mínimo que se espera que este último faça é que cumpra integralmente as condições acordadas no contrato mútuo estabelecido entre ambos. Aliás, de acordo com as regras da moral cristã ocidental, mesmo após a liquidação do empréstimo por parte do mutuário continua a existir uma espécie de penhor, que se manifesta sob a forma de complexo de inferioridade deste perante o outro que o salvou numa hora de aperto.
Acontece que desde a invenção da banca comercial, no século XVI, e em especial a partir do florescimento da indústria do dinheiro na Inglaterra pós revolução gloriosa, tornou-se claro que a dívida era um bem transacionável como qualquer outro, uma mercadoria que possuía valor intrínseco e podia ser usada para saldar outras dívidas ou, ainda melhor, constituir reservas que permitissem criar mais dívida (falamos abundantemente sobre isto aqui). Emprestar passou a ser o negócio da banca por excelência e a dívida uma das componentes da criação de riqueza.
Se vocês tiverem dinheiro disponível para investir podem, por exemplo:
- comprar um apartamento para alugar recebendo rendas;
- emprestar o dinheiro a alguém que compre o apartamento e vos pague juros do empréstimo.
Do ponto de vista do mutuante, ter a hipoteca e receber juros do empréstimo é a mesma coisa que ter o apartamento alugado a inquilinos. Trata-se de um bem, de um investimento!
Assim sendo, a relação do mutuário com o mutuante é, do ponto de vista do investimento, exatamente a mesma relação que existe entre o vendedor e o comprador. Não há qualquer outra relação ou obrigação moral entre ambos e todo o processo de empréstimo é uma transação comercial entre indivíduos livres de decidir e de arriscar.
Visto desta forma, entre um investimento e outro, a maioria talvez preferisse o segundo (eu preferia). Emprestar a juros dá-nos mais flexibilidade em termos de rendimento e permite-nos outro nível de liquidez: é mais fácil transacionar/liquidar títulos de dívida e hipotecas do que bens imóveis!
Mas emprestar a juros exige que sejamos capazes de desativar a bomba nuclear do devedor, caso este queira incumprir, algo que só está ao alcance de quem tenha poder sobre o mercado. É esse o privilégio da banca (ou dos países ricos): ao dominarem o mercado podem inflacionar as dificuldades que o devedor enfrentará caso queira falhar nos termos do empréstimo, uma vez que a hipoteca por si só pode ser insuficiente para desincentivar incumprimentos, porque o mutuário pode chegar à conclusão de que a perda da propriedade é menor prejuízo do que a manutenção das condições do empréstimo. Mas ao constatar que o incumprimento pode ter consequências mais sérias, como sejam cair numa lista negra de um banco central ou incorrer em sanções, o devedor já pensará duas vezes, diluindo assim o risco da hipoteca e aumentando a margem de lucro do mutuante.
É por causa desta visão do empréstimo como negócio que tanto a Grécia como os seus credores podem, sem qualquer complexo de culpa (se é que alguma vez existiu), optar por uma solução que sirva melhor os seus interesses, estabelecendo novas condições ou optando, pura e simplemente, por romper a relação mútua.
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