8.7.14

Há um ano foi assim

O anarquista Anselmo integrou-se no lote dos que andaram a apitar pelas ruas da cidade no dia em que o governo se suicidou. Rejubilou, rejubilou, rejubilou e o chuto de adrenalina foi de tal ordem que, no dia seguinte, apercebeu-se de que tinha ficado com o carro todo amassado. Pelos vistos, tinham-se posto aos saltos em cima do capô e do tejadilho como é costume fazer-se quando o FCP é campeão, de modo que a demissão do MNE saiu-lhe do bolso como se o nosso amigo investisse na bolsa. Natário, o agrimensor, não se deixa entusiasmar de forma tão espalhafatosa, mas está em crer que uma deserção desta monta só se justifica se o motivo for de força maior. O Gasparinho das finanças, por exemplo, foi cuspido no supermercado, coitado do homem, por certo bisca verde da de pior qualidade, e não admira que se tenha posto a bulir. Gosma lançada de mais de três metros que tenha o virtuosismo de acertar no alvo desmoraliza, em princípio de forma irrevogável, quem costuma falhar previsões. Já ao Portas (PP) não consta que tenham atirado caca ou tentado acertar o passo, e nem sequer a uma grandolada teve direito, pelo que a birra deve ter sido provocada por uns acepipes picantes que marcharam na visita de estado ao México, na semana anterior, e que lhe chegaram fogo ao rabo. Do Natário vou bater à porta do Tavares, cuja opinião consulto antes de me pronunciar em definitivo. É que eu próprio tenho o meu painel de comentadores privativos, que me ajudam a fazer uma leitura infalível dos acontecimentos, de modo que quando chego a consenso comigo mesmo já fiz a via-sacra da oscilação mental sem ter a trabalheira de passar horas a ouvir comentadores televisivos. É um sistema bem mais económico em termos de queima de neurónios, que não me importo nada de partilhar convosco. Do ponto de vista do Tavares, estamos em presença de uma daquelas jogadas geniais, apenas ao alcance dos politiqueiros que leram Maquiavel. E elabora: de uma só vez, o nosso irrevogável desertor verga Passos, ajoelha Cavaco e põe os da troika com os olhos fora de órbitas. De bónus ainda faz tremer os mercados mundiais, coloca em perigo as economias e o emprego de muito boa gente e estabelece um novo paradigma para a definição de loucura. No final, os índices que quantificam o grau de vaidade de um indivíduo devem ter atingido valores tão extravagantes que PP estará muito perto de ficar paralítico com os tiques. Orlando, o cético, chega-se à frente e começa a desfiar um rosário de queixas que Passos e Portas têm um do outro e que os fazem ter razão em se odiar mutuamente. Mas eu não estou para o ouvir e despeço-me dos trengos dos meus consultores com a minha ideia feita. Deprimido e com vontade de mandar a racionalidade às urtigas e pensar à moda antiga, puramente de forma emocional, selvagem e instintiva preparo o raspanete que se segue. O que se passou na semana passada foi exemplar da forma como nós somos governados há séculos e do pouquíssimo respeito que o povo português merece a esta gente que vamos pondo no poleiro. E não tenham dúvidas de que somos um povo pobre porque nascemos com o infinito azar de fabricarmos governantes que não têm sentido de estado absolutamente nenhum. Gente que se borra toda se alguém lhes vai um bocado à gamela, mas que é perfeitamente inconsciente do enorme rombo que têm causado na vida de cada um de nós. Ou talvez não seja azar. Na verdade, é altamente provável que o PP ou o PC sejam da mesma estirpe do anarquista Anselmo, que leva tudo no pagode e passa o tempo numa alucinação revolucionária que pulveriza a realidade, ou dos outros meus amigos que vivem da procura de explicações apaziguadoras quando o que está em causa é a mais límpida das traições, um caso flagrante de pena capital, pelotão de fuzilamento. No dia em que este texto chegar às bancas é bem provável que estes estafermos já nos tenham colocado em pleno processo de lavagem cerebral coletiva e andem a convencer-nos de que a garotada da semana passada mais não foi do que um deslize, um arrufo sem importância, natural e inconsequente. Que esta trupe ainda tenha cara de pau para nos vir exigir sacrifícios, e que alguém lhes ligue peva, é a prova definitiva do povo de brandos costumes que nós somos, mas é também o motivo porque continuaremos a ser desgraçadamente mal governados.  

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