O anarquista Anselmo integrou-se no lote dos que andaram a
apitar pelas ruas da cidade no dia em que o governo se suicidou. Rejubilou,
rejubilou, rejubilou e o chuto de adrenalina foi de tal ordem que, no dia
seguinte, apercebeu-se de que tinha ficado com o carro todo amassado. Pelos
vistos, tinham-se posto aos saltos em cima do capô e do tejadilho como é
costume fazer-se quando o FCP é campeão, de modo que a demissão do MNE saiu-lhe
do bolso como se o nosso amigo investisse na bolsa. Natário, o agrimensor, não
se deixa entusiasmar de forma tão espalhafatosa, mas está em crer que uma deserção
desta monta só se justifica se o motivo for de força maior. O Gasparinho das
finanças, por exemplo, foi cuspido no supermercado, coitado do homem, por certo
bisca verde da de pior qualidade, e não admira que se tenha posto a bulir. Gosma
lançada de mais de três metros que tenha o virtuosismo de acertar no alvo
desmoraliza, em princípio de forma irrevogável, quem costuma falhar previsões. Já
ao Portas (PP) não consta que tenham atirado caca ou tentado acertar o passo, e
nem sequer a uma grandolada teve direito, pelo que a birra deve ter sido
provocada por uns acepipes picantes que marcharam na visita de estado ao México,
na semana anterior, e que lhe chegaram fogo ao rabo. Do Natário vou bater à
porta do Tavares, cuja opinião consulto antes de me pronunciar em definitivo. É
que eu próprio tenho o meu painel de comentadores privativos, que me ajudam a
fazer uma leitura infalível dos acontecimentos, de modo que quando chego a
consenso comigo mesmo já fiz a via-sacra da oscilação mental sem ter a trabalheira
de passar horas a ouvir comentadores televisivos. É um sistema bem mais
económico em termos de queima de neurónios, que não me importo nada de
partilhar convosco. Do ponto de vista do Tavares, estamos em presença de uma
daquelas jogadas geniais, apenas ao alcance dos politiqueiros que leram
Maquiavel. E elabora: de uma só vez, o nosso irrevogável desertor verga Passos,
ajoelha Cavaco e põe os da troika com os olhos fora de órbitas. De bónus ainda
faz tremer os mercados mundiais, coloca em perigo as economias e o emprego de
muito boa gente e estabelece um novo paradigma para a definição de loucura. No
final, os índices que quantificam o grau de vaidade de um indivíduo devem ter
atingido valores tão extravagantes que PP estará muito perto de ficar
paralítico com os tiques. Orlando, o cético, chega-se à frente e começa a
desfiar um rosário de queixas que Passos e Portas têm um do outro e que os
fazem ter razão em se odiar mutuamente. Mas eu não estou para o ouvir e despeço-me
dos trengos dos meus consultores com a minha ideia feita. Deprimido e com
vontade de mandar a racionalidade às urtigas e pensar à moda antiga, puramente
de forma emocional, selvagem e instintiva preparo o raspanete que se segue. O
que se passou na semana passada foi exemplar da forma como nós somos governados
há séculos e do pouquíssimo respeito que o povo português merece a esta gente
que vamos pondo no poleiro. E não tenham dúvidas de que somos um povo pobre porque
nascemos com o infinito azar de fabricarmos governantes que não têm sentido de
estado absolutamente nenhum. Gente que se borra toda se alguém lhes vai um
bocado à gamela, mas que é perfeitamente inconsciente do enorme rombo que têm
causado na vida de cada um de nós. Ou talvez não seja azar. Na verdade, é altamente
provável que o PP ou o PC sejam da mesma estirpe do anarquista Anselmo, que
leva tudo no pagode e passa o tempo numa alucinação revolucionária que pulveriza
a realidade, ou dos outros meus amigos que vivem da procura de explicações
apaziguadoras quando o que está em causa é a mais límpida das traições, um caso
flagrante de pena capital, pelotão de fuzilamento. No dia em que este texto
chegar às bancas é bem provável que estes estafermos já nos tenham colocado em pleno
processo de lavagem cerebral coletiva e andem a convencer-nos de que a garotada da semana passada mais não foi do que
um deslize, um arrufo sem importância, natural e inconsequente. Que esta trupe
ainda tenha cara de pau para nos vir exigir sacrifícios, e que alguém lhes
ligue peva, é a prova definitiva do povo de brandos costumes que nós somos, mas
é também o motivo porque continuaremos a ser desgraçadamente mal governados.
Sem comentários:
Enviar um comentário