Cumprem-se hoje (há quem defenda que é amanhã) 400 anos desde a morte de Miguel de Cervantes, autor de D. Quixote de La Mancha, a história das aventuras do cavaleiro da triste figura e do seu fiel escudeiro, o balofo Sancho Pancha.
Lembro-me de os ver religiosamente na televisão em desenhos animados que enfatizavam os episódios rocambolescos, de uma forma aparentemente sem sentido: o categorizado e engenhoso fidalgo, amante da mais fina arte da cavalaria andante, cavalheiro no mais alto grau, ansioso por salvar a donzela Dulcineia, mete-se em mil e um apuros como se fosse destituído de senso, e é sempre salvo pelo aparentemente néscio e bebedolas Sancho Pança que, no final, resulta no mais fino dos dois. E era essa nuance que mais me intrigava. Mais do que as aventuras e tropelias daquela dupla imbatível, mais do que os episódios de piada fácil, era essa insensatez, que transformava as evidências em coisas ilusórias, o que mais acabou por me marcar.
Mais tarde, infelizmente mais tarde do que gostaria, acabei por pegar no livro e li-o com um prazer que nunca mais experimentei na leitura. O Quixote de Cervantes não foi uma epifania, mas uma enxurrada delas. Nada há no Quixote de maluco, nada existe de irracional. Pelo contrário! O Quixote tem tudo aquilo que nos torna humanos: aquela vontade de querer sempre fazer as coisas bem feitas, raciocinando por antecipação, mas sempre com a emoção à flor da pele; e, no final, estarmos permanentemente a chocar com uma realidade que parece ter gosto em nos tramar. Cervantes passa todo o livro num equilíbrio dificílimo, a mostrar como é traiçoeira essa arte de sermos verdadeiramente humanos, sem parecer que temos um parafuso a menos. Estou firmemente convencido que ninguém o conseguiu fazer tão bem, ninguém desenhou a traço tão certeiro o homem bom como Miguel de Cervantes o fez.
O D. Quixote de La Mancha é o meu livro número 1, a leitura que mais influenciou a minha maneira de ser e de estar, e o livro que mais me deu de todos quantos li. É a linguagem total, que retrata de uma forma inigualável as incongruências da vida. Gostei particularmente da versão traduzida pelo Aquilino Ribeiro, embora reconheça que o nosso grande escritor se possa ter entusiasmado e feito uns acrescentos lusos ao que não consta em castelhano.
Recomendo-o sempre nas minhas aulas e há uma parte dos alunos que o lêem que acabam por referir que é um livro engraçado. Mas o Quixote não é engraçado (engraçado é o Tom & Jerry, p.e.), embora seja uma barrigada de riso. O Quixote está para lá de engraçado, como a vida está para lá de um amontoado de eventos divertidos. E quem não o lê, fica sem uma lição de ouro sobre a arte de saber viver.
Cervantes escreveu mais do que o Quixote, e o que escreveu foi engraçado. Mas não precisava de o ter feito. O história das aventuras do seu engenhoso cavaleiro da triste figura, D. Quixote de La Mancha, é um Livro da Humanidade como são poucos. Quis o destino que, tirando nuances que têm que ver com acertos de calendário, Cervantes morresse no mesmo dia que Shakespeare: o dia Mundial do Livro que se comemora amanhã!
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