21.4.17

A linguagem ao serviço do poder (segunda parte)

A linguagem foi sempre o nervo das ditaduras porque é a maneira como falamos delas que lhes dá força. É manipulada, simplificada: o bem e o mal, o crente e o inimigo, o dever e o proibido… Quer-se simples, sem ambiguidades possíveis e, sobretudo, dissuasora de qualquer pensamento próprio.

Não deixa de ser pertinente verificar que a par de sociedades cada vez mais complexas no seu funcionamento, prolifera uma linguagem que quanta mais estereotipada se torna mais sintomática é de um mundo pobre e sem ideias, sem forças para reagir às várias formas de poder. 

É também esta a história de 2084, o fim do mundo

“Se alguns tinham pensado que com o tempo e o amadurecimento das civilizações as línguas se dilatariam, ganhariam em significados e em sílabas, pois é exatamente o contrário: elas tinham encolhido, tinham ficado mais pequenas, tinham-se reduzido a coleções de onomatopeias e de exclamações, na verdade pouco fornecidas, que soavam como gritos e gemidos primitivos, o que não permitia de todo desenvolver pensamentos complexos e de aceder por essa via a níveis superiores.”

Na obra, o Abilang é a língua oficial de Abistão, uma língua reduzida a poucas sílabas. Nas ruas proliferam slogans e, em simultâneo, ouve-se constantemente o refrão “O único Deus é Yölah e Abi é o seu delegado”. Assim, os versos recitados sem fim banem a imaginação e o questionamento dos homens. Todo o conhecimento está escrito na língua oficial no Gkabul, o livro sagrado cuja vocação é ser recitado em fórmulas fixas, banindo desta forma qualquer ambição de se exprimir ou mesmo de pensar por si próprio por ser considerado uma heresia passível de ser condenada à morte. 

“Será a religião que cria para si mesma uma linguagem especial por necessidade de sofisticação e de manipulação mental, ou será a língua que atingindo um nível elevado de perfeição se inventa um universo ideal e fatalmente o sacraliza?”, esta é uma das perguntas colocadas em 2084, O fim do mundo em conversas proibidas. 

Da mesma forma, a identidade é atingida: os nomes das personagens são sempre a combinação de três letras apenas, Ati (estranhamente próximo de Abi, o delegado supremo), Sîn, Ali, Toz, Nol… simplificação que propositadamente confunde, sendo outra forma de desumanização.

Por oposição à simplificação, como que criando um equilíbrio, surge o complexo do governo de Abi, o Abigov, onde vivem milhares de funcionários que trabalham para o Aparelho; o seu funcionamento, as várias secções são propositadamente complexas, caóticas e labirínticas, é impossível perceber onde começa e onde acaba, as filas para aceder à administração podem durar dias, semanas ou mesmo anos, mais uma forma de exercer o poder, quando este não pode ser alcançado, compreendido.

“O Abigov era uma gigantesca fábrica de mistérios cujos próprios cérebros ignoravam para que ela servia e como ela funcionava; eles tinham sido regulados para executar, não para compreender. (…) Abigov era uma abstração”.

A língua é, sem dúvida, um instrumento de poder: dominar a língua é dominar o outro. A ausência de palavras para designar o outro ou para descrever o mundo desaparecido depois da Grande Guerra Santa instala o silêncio e o esquecimento e dá lugar a um mundo fabricado e manipulado nos limites permitidos pela língua.

Estado Islâmico, regimes totalitários? Sem sombra de dúvidas. Mas quantos outros a caminho da mesma manipulação?

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