A linguagem foi sempre o nervo das
ditaduras porque é a maneira como falamos delas que lhes dá força. É manipulada, simplificada: o bem e o mal, o crente e
o inimigo, o dever e o proibido… Quer-se simples, sem ambiguidades possíveis e,
sobretudo, dissuasora de qualquer pensamento próprio.
Não deixa de ser pertinente verificar que a par de sociedades cada vez mais complexas no seu funcionamento, prolifera uma linguagem que quanta mais estereotipada se torna mais sintomática é de um mundo pobre e sem ideias, sem forças para reagir às várias formas de poder.
É também esta a história de 2084, o fim do mundo.
“Se alguns tinham pensado que
com o tempo e o amadurecimento das civilizações as línguas se dilatariam,
ganhariam em significados e em sílabas, pois é exatamente o contrário: elas
tinham encolhido, tinham ficado mais pequenas, tinham-se reduzido a coleções de
onomatopeias e de exclamações, na verdade pouco fornecidas, que soavam como
gritos e gemidos primitivos, o que não permitia de todo desenvolver pensamentos
complexos e de aceder por essa via a níveis superiores.”
“Será a religião que cria para si mesma uma linguagem especial por necessidade de sofisticação e de manipulação mental, ou será a língua que atingindo um nível elevado de perfeição se inventa um universo ideal e fatalmente o sacraliza?”, esta é uma das perguntas colocadas em 2084, O fim do mundo em conversas proibidas.
Da mesma forma, a identidade é atingida: os nomes das personagens são sempre a combinação de três letras apenas, Ati (estranhamente próximo de Abi, o delegado supremo), Sîn, Ali, Toz, Nol… simplificação que propositadamente confunde, sendo outra forma de desumanização.
Por
oposição à simplificação, como que criando um equilíbrio, surge o complexo do
governo de Abi, o Abigov, onde vivem milhares de funcionários que trabalham
para o Aparelho; o seu funcionamento, as várias secções são propositadamente
complexas, caóticas e labirínticas, é impossível perceber onde começa e onde
acaba, as filas para aceder à administração podem durar dias, semanas ou mesmo
anos, mais uma forma de exercer o poder, quando este não pode ser alcançado,
compreendido.
“O Abigov era uma gigantesca fábrica de
mistérios cujos próprios cérebros ignoravam para que ela servia e como ela
funcionava; eles tinham sido regulados para executar, não para compreender. (…)
Abigov era uma abstração”.
A língua é, sem dúvida, um instrumento de poder: dominar a língua é dominar o outro. A ausência de palavras para designar o outro ou para descrever o mundo desaparecido depois da Grande Guerra Santa instala o silêncio e o esquecimento e dá lugar a um mundo fabricado e manipulado nos limites permitidos pela língua.
Estado Islâmico, regimes totalitários? Sem sombra de dúvidas. Mas quantos outros a caminho da mesma manipulação?
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