27.6.14

Quatro dimensões (parte 2)

O Tavares foi indo às apalpadelas para o futuro e descobriu que o universo é matreiro como o diabo. Quando viajas para o futuro sais tipo do teu corpo e estás num universo paralelo ou numa cena marada do género, de maneira que podes ver tudo como se estivesses de fora, bem, podes interagir e assim, mas há dois tus, o tu que está lá e que envelhece até morrer e o tu que viaja. E o que acontece se os dois tus se encontrarem? É uma boa pergunta mas o Tavares não nos soube responder porque não se conseguiu encontrar com o Tavares original. Asseguro-vos que ficamos tão desiludidos quanto vocês por os Tavares não se terem encontrado, mas talvez algo na engrenagem universal impedisse situações com tal poder destrutivo. Enfim, um dia o Tavares chegou em lágrimas e todo fungoso e depois de muita luta acabou por se abrir connosco e contou-nos que tinha estado no seu próprio funeral, uma cerimónia singela, muitos ramos de flores, muito pranto, mas em duas horas tudo estava arrumado, adeus Tavares. O cómico da situação é que ao Tavares tinham feito o enterro sem cadáver, tipo, não havia nada dentro do caixão a não ser renda e pano barato porque parecia que um dia se tinha enfiado em casa e sumido. A notícia da estranha morte futura do Tavares contada por ele próprio abalou-nos a todos um par de horas ou coisa que o valha, mas os desejos de saber mais sobre o futuro eram tão grandes que rapidamente toda a gente passou uma esponja sobre o assunto e decidimos seguir em frente. Demais a mais, ao nosso amigo soltou-se-lhe o medo, quer dizer se te hão de fazer o funeral de qualquer das formas para que estás tu a matutar e hesitas? É aproveitar a vida enquanto podemos e eu e os outros não podíamos estar mais de acordo. Uns dias mais tarde, o nosso amigo veio ter connosco e lançou-nos a bomba que ninguém esperava, meus caros, disse ele solenemente, exorbitei e estive trinta milhões de anos no futuro, e não estive lá um dia ou dois mas muito tempo, e até vos passais se vos contar em que sentido tudo isto vai evoluir. É verdade que a Terra existe há cinco mil milhões de anos e os animais para aí há seiscentos milhões, pelo menos foi a conversa que, tanto quanto me lembro, nos quiseram impingir na aula de ciências e é certo que os dinossáurios nos deixaram para sempre há 65 milhões de anos porque o Tavares esteve lá e assistiu na primeira fila aos acontecimentos, mas os números são tão ões que ninguém está preparado para os pesar com um pouco de senso, de maneira que quando tu pensas em viajar para o futuro, bem, estás a contar com uma viagem de um ou dois séculos quando muito, se estiveres suficientemente passado dos carretos mil anos, mas ninguém se preparou para viajar para o futuro trinta milhões de primaveras. É simplesmente um número grande de mais para caber no nosso cérebro. É uma questão de pura exiguidade de espaço. Portanto, foi perfeitamente normal que durante algum tempo nenhum de nós se tenha atrevido a soltar uma palavra que fosse de tão aturdidos ficamos. O Tavares desfrutou com prazer de cada segundo que passou em que olhava para as nossas caras de palermas a quem tinham acabado de contar a coisa mais estrambólica que era possível imaginar e via-se que aquilo lhe dava, como é natural, um gozo formidável. Se leram esta história até aqui, dou por adquirido que estejam mesmo interessados nisto e que sejam suficientemente curiosos para saber como será o mundo daqui por trinta milhões de anos, pelo que não me vou fazer de rogado nem nada que se pareça e sirvo-vos esta informação em segunda mão, deixando registado desde já que é a melhor que irão ter no vosso tempo de vida. Pois bem, daqui por trinta milhões de anos os humanos são tão parte do passado quanto os dinossáurios são hoje. Na verdade, lamento muito mas extinguimo-nos no século XXI, diga-se que depois de eu morrer sem imaginação nem talento, no seguimento da guerra iniciada pela Coreia do Norte que lançará sem querer uma bomba avariada sobre Seul. É inglório acabar assim bem sei, mas vai ser aquela cambada de patuscos aduladores de líderes que nos vão fazer a folha. O que se segue é uma natural guerra nuclear em que toda a gente sem exceção passou das marcas. No final, tudo terminou quando um cometa do tamanho da Espanha se atravessou no nosso caminho e ninguém teve tempo de dizer ai. Aqui confesso que desconfiei que o Tavares nos estava a enfiar uma patranha ou que tinha sonhado ou coisa parecida porque a história é pobre e um pouco requentada, mas o que veio a seguir acabou por fazer tanto sentido que nos deixamos todos embalar e acreditamos como se fossemos anjinhos. Como sempre, há quem sobreviva ao armagedão. Não sei se já ouviram falar em tardígrados, também conhecidos como ursos d’agua? Não? Vão à net conhecê-los porque são eles que vão passar a mandar. Daqui por 30 milhões de anos só vai haver tardígrados nesta zona do universo e eles não têm nenhum dos nossos defeitos, são módicos na despesa, não são burros nem têm a mania das grandezas, têm dezenas de órgãos dos sentidos inovadores que lhes permitem receber muito mais informação do universo, não têm alma, não avariam, não pecam, não respiram, reproduzem-se com o pensamento, não vão ao facebook, são todos bonitos e elegantes (evoluíram bastante desde que se tornaram dominantes) e, pasme-se, não padecem desse inconveniente de morrer. Aqui benzi-me. Os tardígrados não morrem! Que coisa mais baril… não morrer! Podem esbarrar-se as vezes que quiserem ou levarem, tipo, com tijolos na cabeça, ou coisa que o valha que não há maneira de os liquidar e nem os vírus ou cenas desse género conseguem fazer farinha com eles. Numa palavra, os sacanas são indestrutíveis, o que, convenhamos, é uma vantagem do caraças. Claro que nós, os humanos, se não morrêssemos íamo-nos aborrecer pela certa e tínhamos que arranjar uma solução que nos desse cabo do canastro. Mas os tardígrados são feitos de outra cepa, o que os tornará bestialmente racionais. E como é que eles cabem todos na Terra, pergunta o povo ingénuo? Pois eu respondo com gosto ou, melhor ainda, respondo com as palavras sábias do meu saudoso amigo Tavares, que os viu em ação e com eles conviveu, os tardi são compactos e ocupam pouco espaço, não precisam de vivendas acasteladas como nós e podem facilmente residir num buraco no meio do deserto ou numa cova debaixo de um glaciar, havendo, inclusive, aqueles que se pelam por um nicho dentro de um vulcão, de maneira que um planeta que dê para sete mil milhões de pessoas alberga com facilidade uma mole desses adoráveis seres. Para além disso, como são bastante inteligentes, fizeram naves espaciais boas e puseram-se a viajar por tudo quanto é espaço interestelar, acabando por colonizar incontáveis planetas, como se cada um deles fosse, tipo, um Luke Skywalker ou assim, e quando se fartam de estar num determinado sistema solar, o que é difícil de acontecer uma vez que não são nada esquisitos, mudam de ares, de maneira que jamais se aborrecem. Trata-se de gente mesmo muito à frente, e o Tavares não foi nada meigo a pintar o nosso atraso de vida com as cores negras da tristeza e, pela parte que me toca, digo-vos que subscrevia de bom grado uma petição pública para liquidar os humanos já hoje e arrepiar caminho. O que se segue é que dois dias mais tarde o nosso amigo veio ter connosco com o projeto de se abalançar mil milhões de anos para o futuro e todos ficamos muito excitados com a envergadura da empreitada. Que seria feito dos nossos admiráveis heróis futuristas? Que maravilhas nos seriam reveladas? Despedi-me do meu amigo Tavares com o coração cheio de uma salutar expetativa e vi-o entrar em casa e passados cinco minutos houve o clássico clarão da engenhoca a operar que ainda pude ver através dos vidros das janelas. Nunca mais o vimos, ao Tavares. Hoje, três meses depois do seu desaparecimento, vamos enterrar o seu caixão sem corpo e prometo que estarei atento para ver se o topo no cemitério. Depois conto-vos. 

O genérico final lembra-nos coisas que nunca devemos esquecer, mas tem o inconveniente de só ser compreendido por aqueles que como eu passaram os anos 80 a ouvir boa música!



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