História nº 1 (última parte)
A crise que se iniciou em 2007, e viria a agravar-se em setembro de 2008 com a falência do Lehman Brothers, é uma crise de sobreavaliação das reservas do sistema bancário.
Durante a fase de crescimento explosivo do mercado imobiliário os bancos andaram a constituir massivas reservas não com ouro ou prata, mas com hipotecas de crédito à habitação.
O crescimento económico no ocidente nas décadas finais do século XX criou uma sociedade em que os rendimentos crescentes não encontravam escoamento nos produtos tradicionais do mercado, ao mesmo tempo que as políticas sociais conduziram a uma sensação de segurança que desincentivou a poupança tradicional. Na ótica do ourives/banqueiro da nossa história, o que começou a passar-se no final do século XX foi paradoxal: havia mais riqueza para depositar no cofre, mas, devido ao crescente consumo, os valores circulavam entre os cofres dos diferentes concorrentes a uma velocidade tal que obrigava a elevar o rácio de constituição de reservas seguras, ao mesmo tempo que reduzia o negócio prestamista da Banca.
A solução surgiu na forma de crédito a habitação, tradicionalmente um crédito de longo prazo, o que significava que a reserva constituída pela hipoteca seria mantida no cofre por muito tempo. Para além disso, o crédito à habitação vinha com uma panóplia de extras que, em conjunto, rebentavam com o espaço no cofre do ourives mais extravagante: crédito aos construtores, aos fornecedores de todo o tipo de materiais, aos fabricantes de mobiliário, de eletrodomésticos, e de tudo o mais que uma casa pudesse conter e, até, artigos não relacionados, como automóveis e respetivos fabricantes. E para todos esses créditos eram produzidas hipotecas que se amontoavam no cofre do banco, prontas a serem liquidadas, se alguém se apresentasse para fazer levantamentos. E o mais incrível era que o valor das próprias hipotecas no mercado subia, não só porque havia o registo histórico de a habitação nunca ter desvalorizado, mas também porque eram valorizadas enquanto reservas de capital. No fundo era como se o vosso empréstimo de 1000€ ao Amílcar valorizasse e vocês o pudessem vender ao Zeferino, ao fim de algum tempo, por, digamos, 1500€. Uma loucura!
A sensação de segurança de que a sociedade gozava tornou a compra de casa compulsiva e os bancos começaram a ter lucros incríveis com os juros que recebiam, ao mesmo tempo que acumulavam reservas de capital verdadeiramente imparáveis. Com o negócio a carburar dessa forma, não admira que as cotações das ações da banca voassem em Bolsa, arrastando na subida empresas de todo o tipo e feitio, algumas das quais não valiam um vintém furado.
Como os salários e bónus dos conselhos de administração estavam indexados aos resultados obtidos que, por sua vez, influenciavam as cotações em Bolsa e dependiam das reservas de capital, chegou-se a um ponto em que o único objetivo da Banca passou a ser adquirir hipotecas, que eram avaliadas segundo o pretenso valor de mercado do imobiliário, ignorando a capacidade de pagamento de quem pedia o crédito. Em meados da primeira década do século XXI, muito do verdadeiro crédito à habitação estava esgotado e começou a crescer um segmento designado como subprime: uma espécie de crédito de baixa categoria que no limite era concedido a pessoas que recebiam a designação de NINJA (no income, no job or asset). Está tudo dito! Os banqueiros sabiam que essas hipotecas nunca seriam pagas, e também sabiam que os colaterais (as casas hipotecadas) desvalorizariam de forma acentuada quando o mercado fosse inundado de incumprimentos, mas tinham no recibo do salário o incentivo certo para acumularem reservas de lixo nos respetivos cofres.
E sabiam que no dia em que aqueles que neles confiaram para guardar os seus valores lhos viessem pedir de volta, eles não os teriam no cofre, porque tudo o que lá existia era hipotecas de casas que tinham gente dentro que não podia pagar o crédito e, se fossem vendidas, valiam muito menos do que o valor hipotecado. Por esse motivo, os banqueiros começaram a titularizar essas hipotecas e a vendê-las a retalho sob a forma de fundos com nomes pomposos, contando com a cumplicidade das mais tarde famosas agências de rating. No fim, houve países inteiros, como a Islândia ou a Irlanda que, por intermédio dos seus próprios bancos, acabaram por adquirir quantidades colossais desses títulos vendidos como filet mignon, mas que não passavam de chicha cinzenta e com bicho.
O estouro das hipotecas subprime, com a correção fortemente em baixa das reservas do sistema bancário, atirou por terra toda a confiança que existia a nível internacional nos cofres dos ourives/banqueiros dos nossos dias e criou uma crise de liquidez de proporções históricas. A dada altura, quem tinha em mãos títulos de dívida de proveniência mal-afamada tudo o que queria era arranjar quem com eles ficasse, desde que pudesse salvar uma fração do que tinha emprestado. Foi assim que nós, os portugueses, nos transformamos no Amílcar da nossa história e, não só ficamos sem gente para nos emprestar, como aqueles que nos tinham emprestado entregavam por tuta e meia a nossa dívida aos Zeferinos de serviço, fazendo subir os nossos juros nos chamados mercados secundários.
Mas que ninguém se queixe dos gananciosos banqueiros e dos loucos do subprime porque nas democracias é o povo quem mais ordena… mas é também o povo quem paga.
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