5.2.17

Arquivo morto

      Assim mesmo, com grão. Quero-as assim, imperfeitas, tal como as vi na luz difusa. Estas imagens empoeiradas, a definição mesma de arquivo morto, apresentaram-se-me, epifania sintomática. 
      A somar a tudo o que nos sobra e de nós sobra, todos aqueles resumos redigidos a pulso por centenas de nós, toda a cinza do trabalho feito, a inexorabilidade do tempo, como serpente constrictora, me transportaram, teleportando-me. Exactamente como nos sonhos, acima do solo, em suspensão tal como, nesta música, esta figura é transportada. [Ao minuto e onze (1'11"), a parte deleitosa da música diz-me, irónica: "É a vida, é a vida... ".]


      Todos os dias de mais de doze horas, todos os serões sem almoço, todas as noites pelos dias dentro, as horas da escuridão em claro, os lamentos, como Schindler, I could have done more..., o avesso dos dias longe, todos os quilómetros percorridos, o pagamento à Galp, à EDP, para trabalhar (muita gasolina, muita electricidade gastas...), todos os livros lidos, todos os apontamentos, as deprimências prementes de idiotias e boçalidades dos superiores hierárquicos, as cabeçadas em vidros de autocarro em acessos narcolépticos, quando o corpo cede ao esgotamento, os sentidos embotados. E as hesitações, as avaliações, as sanções, o vazio de tudo o que se resume aos pontos picados, o a toque de caixa dos toques. Os de entrada, de saída, os supostamente piores que rectais. As cãs, tão esperadas - bonitas por definição, prateadas - instalando-se, cúmplices do tempo; os ossos, aclimatizados às latitudes, formatados a malas, mochilas e portáteis; os ouvidos, embaciados de tantos rostos, e os olhos já hipoacússicos de tantos nomes, tantos sotaques, os cheiros de outros céus, o agridoce dos cedros, a moscaria do feno, as ovelhas nas serras, o pinho tocado a vento, Bornes, Marão e Gerês, Aire e Candeeiros, quedas de água, neve ou terreno lunar, seco e acre. 

      Tudo, tudo, se enrola nos palimpsestos sem pergaminho de capa rósea ou alaranjada, dependendo dos ventos soprantes do Largo de São Bento, a Sul. E o todo, o grosso, a massa, a mole, remanesce aqui, num arquivo entre tantos. Tanta sabedoria, os milénios históricos, as fórmulas e os versos, em agrado a Guelfos e Gibelinos... Tudo se acoita ali, sob o pó. Ileso, em transporte para outras datas, quando, no dia que nunca virá, forem reabertos, numa Alexandria sem mérito, sem fogo, sem sábios. Só formatação, só obrigações, já tão só "livros de ponto". No oblívio que merecem.

Sem comentários:

Enviar um comentário