12.2.17

Vale uma aposta?...

A mui apregoada e suposta bondade dos portugueses acaba na fila para a compra da raspadinha.


Ei-los, que rangem dentes, um olho na supracitada, outro no vizinho, em estrabismo divergente; o gesto iracundo, fingindo "cara de poker", o peito arfante, quero aquela-vi primeiro-mereço mais; a cotovelada cirúrgica, desculpe, o seu guarda-chuva escorregou do balcão, a oportunidade, mal surgida, logo feita sua, em ambas as mãos tomada! Ah, é desta!...
Se um cineasta lúbrico (ser famoso nem é requisito) - em gulosos fotogramas não autorizados e detalhistas - registasse as mil caras que cada um faz desde a antevisão do /aaaaaaaah/ (som angelical que se usa no cinema para dizer que alguém teve uma epifania e se cala abruptamente, sem “fade out”, mal a glória se aproxima), passando pelo gesto da aquisição, dedo em riste - quero aquela!  -, espraiando-se a câmara no momento do transporte do tesouro, sudorese em clímax, mãos trémulas, as inevitáveis escolhas: a) de um cantinho para raspar sem público ou sequer testemunha; b) da moedinha raspadora que vai trazer a sorte; c) da escolha do sentido do próprio acto, com pontos cardeais de um Quinto Império templário como orientação messiânica, e, claro, as diferentes fases da "raspagem/dela" - aqui, entrava a fase "slow motion", em todas as diferentes "nuances" da expressividade expectante e pré-orgástica dos sujeitos observados - e acabando na cara número vinte e cinco (ou qualquer outra do catálogo), entre a fúria odienta contra a sorte, a SCML e todos os santinhos pré-invocados, o semblante titânico-furioso, espumante, relinchoso, ganinte, acossado por demónios, o ponto de rebuçado paroxístico de quem gastou o último euro da carteira...
Aí sim, poderia afirmar-se - com certezas de base canónica e científica, com provas dadas e com controlo da experiência laboratorial - que a fleuma judaico-cristã termina na entrevisão do "feliz contemplado" com as trombetas cuspidas pela máquina registadora.
Pior que o enxovalho social, o urticante sofrimento que só um tinhoso conhece ou até que os próprios impostos, só a dor da junção óssea do braço com o antebraço proporciona o mais excruciante dos ordálios.
Por vezes, até o simples lançamento dos despojos num ecoponto está fora de cogitação: apetece a imolação pelo fogo da dita cuja, atirá-la para o mais vil dos lixos, esmagá-la sob o pé mais forte com requintes de malvadez, como se fora insecto ou rastejante... E jurar para nunca, nunca mais, o acto submisso de se entregar à humilhação do "Oooh que pena, esta não tem nada".
Até que em dia avulso, novamente, se lhe implante entre as meninges a peregrina ideia, a princípio tímida e fosca, mas já insidiosa como célula doente, excrescência plantar coriácea ou pára-brisas com fissura maior-que-uma-moeda-de-dois-euros que se ramifica como árvore na direcção solar após longo inverno: "só uma, p'ra matar o vício...".

As trombetas da caixa registadora preparam-se já e, novamente, soarão. É, contudo, tido como factual que a lei das probabilidades aponta para o supracitado (o filho da mãe do) "gajo do guarda-chuva"...

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