3.2.17

Ensinados a apreciar arte moderna?

A exposição José de Almada Negreiros: Uma maneira de ser moderno é hoje inaugurada na Gulbenkian até 5 de junho e podemos prever que será mais um caso de sucesso, à semelhança de outras exposições de arte moderna e contemporânea, que conseguiram arrastar “multidões” (estamos a falar de arte) até aos museus, como Joana de Vasconcelos, Paula Rego ou Amadeo de Souza-Cardoso, para falar apenas de artistas portugueses. Muitas exposições são prolongadas; é o caso da exposição do artista catalão Joan Miró: Materialidade e Metamorfose, atualmente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, que foi prolongada até junho (de crer que a fama do pintor não é o único argumento), o que confirma um público recetivo a uma arte que não é procurada por ser bonita ou por estar na moda.

É sinal que fomos ensinados a gostar de arte moderna e contemporânea ou que gostamos mesmo dessa arte ou de arte, simplesmente?

Normalmente, associamos a arte moderna a formas geométricas, a trabalhos em que a realidade que conhecemos não está lá, pelo menos não como a vemos todos os dias ou, se está, está de forma exagerada e, portanto, irreal; de facto, o que importa é outra coisa, nem sempre se sabe muito bem o quê, mas a verdade é que interpela, prende o olhar: é um cruzamento de linhas, um conjunto de manchas coloridas, umas figuras escondidas ou sugeridas, uma ginástica de formas que nos obriga a posições pouco ortodoxas face à obra de arte para dar algum sentido àquilo… Enfim, uma linguagem que usa códigos que nos confundem e que são difíceis de decifrar. E se não houvesse nada para decifrar?

A arte moderna não é reconhecer algo, mas é sobretudo sentir. É perturbar, questionar, é lembrar que a realidade não é o que parece e que deixamos de ver o que nos rodeia porque, na verdade, estamos formatados e adormecidos.

Na aguarela “Sem título (Dançarina)” de Joan Miró, vê-se uma figura feminina reduzida ou simplificada a signos, neste caso, a ondas para o cabelo, a uma linha para o corpo; no meio do corpo, um pé e, na ponta dessa linha quebrada em diagonal, outro pé. Um conjunto de signos que cada um recria numa nova realidade, revelando uma figura em movimento.


Uma das questões é, por exemplo: o que faz com que aquele traço na continuidade da linha seja mais pé do que aquele que, no meio da aguarela, é logo reconhecido pela sua forma mais convencional, apesar de estar colocado no centro do corpo? O que faz de um corpo um corpo? O que orienta a nossa forma de ver o mundo ou a forma de ver o outro?

Se colocarmos estas questões (provavelmente com respostas muito complexas), já podemos ultrapassar o comentário “Até eu desenhava isto!”.

A arte é despoletar sensações, despertar consciências, é ensinar a ver. A ver pela primeira vez ou a ver outra vez, pois a criança, ainda por formatar, vê com um olhar novo, puro, sem contaminações e grelhas de leitura. A arte é sermos crianças novamente. Muitos trabalhos de Miró lembram desenhos de criança, ao ponto de acreditarmos que somos todos artistas.  Não somos todos artistas, contudo, somos todos amadores de arte, mesmo que não o saibamos.

Almada Negreiros é também conhecido por ser um artista moderno que experimentou todas as artes e em que todos os géneros se contaminam (pintura, desenho, teatro, dança, cinema, etc.), convicto de que não há artes nobres ou menos nobres e de que os limites da arte devem ser abolidos, como seres plurais que também somos. 

Estamos todos familiarizados com a obra de Almada Negreiros, presente em algumas obras públicas como na Gare Marítima de Alcântara ou na Universidade de Lisboa, ou basta lembrar o famoso retrato de Fernando pessoa, tão célebre que este retrato se torna mais real do que o próprio Fernando Pessoa (coisas da arte).

Quando se olha para os trabalhos do artista, nem sempre reconhecemos o que é ali representado, pois nada é para ser representado, bem pelo contrário, interessa apenas (re)descobrir e esta exposição, que tem a vantagem de reunir 400 trabalhos do artista, um quarto deles inéditos, é mais uma oportunidade para questionar certezas e confortos.



Duas exposições a não perder.
Cristina Gomes

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