Ao ver o noticiário, há um leitmotiv que faz vender, que agarra a
atenção de quem está sempre a ver e a ouvir tudo, é o leitmotiv da corrupção, do terrorismo, da subida do populismo, do sofrimento,
ou seja, do Mal e..., sem forma de lhe escapar, do Amor (um piscar de olhos para o São Valentim que se aproxima...). O problema é que as várias facetas do Mal são apresentadas
como se fossem uma crise; fala-se da crise dos refugiados, da crise do Médio
Oriente, da crise do Brasil, da nossa crise económica (com todas as outras aí
incluídas), da crise do amor. Ora a crise normalmente é conjuntura, momento passageiro; por isso
é outra coisa. Transição também não é.
Para entender melhor, a
literatura revela-se uma ajuda preciosa. A obra Eu confesso, de Jaume Cabré, procura explicar, através da ficção, a
genealogia do Mal, nomeadamente a construção da identidade europeia, e mais
particularmente a cultura judaico-cristã, recorrendo a figuras reais e
acontecimentos históricos. Uma verdadeira obra-prima.
Na obra do autor catalão, Eu confesso, as histórias cruzam-se no
tempo e no espaço, fundindo-se umas nas outras: versam sobre as várias formas
do Mal, da sua capacidade em passar de um homem para outro, desde a Inquisição
até ao franquismo, passando pelo nazismo. É a História da Europa que se tece através
de um violino que passa de mãos em mãos, sempre pelas piores razões, normalmente
a cobiça.
O narrador Adrià Ardèvol conta a
sua infância em Barcelona, com um pai autoritário, quase sempre ausente, que
exige do seu filho único que seja poliglota. E uma mãe que tem um único sonho:
fazer do seu filho um violonista virtuoso que tocará o violino de Storioni, o
rival de Stradivarius, fabricado em Cremona em 1764.
As histórias misturam-se porque
quem as escreve, na primeira e na terceira pessoas, sofre de inícios de
Alzheimer, um homem superdotado, um intelectual que toda a vida estudou a
história das ideias e da cultura e que tem uma capacidade prodigiosa para
aprender línguas estrangeiras. Decide, então, escrever uma longa carta à única
mulher que amou verdadeiramente, Sara Voltes-Epstein. É, como avisei, também um
romance de amor.
Adriá é, assim, uma criança mal-amada
e solitária, vítima das ambições desmesuradas dos pais. Através da sua
história, são cinco séculos de História que surgem por atalhos e curtos
circuitos. Entramos num mosteiro românico perdido nos Pirenéus em plena
Inquisição e, sem avisos, estamos no século XX, em Auschwitz, em Birkenau, no Vaticano
e num regresso constante a Barcelona. O leitor nunca é guiado nestes caminhos
da História, guia-o apenas a consciência de que o Homem não muda e que o Mal,
curiosamente, também convive com o amor e com a amizade, mas nunca com o
esquecimento.
Adriá diz aos seus estudantes:
“A realidade das coisas da vida só podem ser
decifradas, aproximadamente, com a ajuda da obra de arte, mesmo se ela
continua incompreensível”.
Ler para compreender, uma boa
aposta.
Que belo resumo. Confesso que busquei em virtude de alguns detalhes do livro que não compreendi, falta pouco para terminar a leitura do livro, mas o detalhe que descreveu sobre a mistura que o narrador as vezes faz entre 1ª e 2ª pessoa devido ao Alzheimer não havia captado, estava acreditando ser uma forma de aproximar o leitor da história do personagem Ádria. Essa obra tem minúcias agradáveis. Um abraço.
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