12.2.17

"Eu confesso", de Jaume Cabré: uma obra-prima. (primeira parte)

Ao ver o noticiário, há um leitmotiv que faz vender, que agarra a atenção de quem está sempre a ver e a ouvir tudo, é o leitmotiv da corrupção, do terrorismo, da subida do populismo, do sofrimento, ou seja, do Mal e..., sem forma de lhe escapar, do Amor (um piscar de olhos para o São Valentim que se aproxima...). O problema é que as várias facetas do Mal são apresentadas como se fossem uma crise; fala-se da crise dos refugiados, da crise do Médio Oriente, da crise do Brasil, da nossa crise económica (com todas as outras aí incluídas), da crise do amor. Ora a crise normalmente é conjuntura, momento passageiro; por isso é outra coisa. Transição também não é.

Para entender melhor, a literatura revela-se uma ajuda preciosa. A obra Eu confesso, de Jaume Cabré, procura explicar, através da ficção, a genealogia do Mal, nomeadamente a construção da identidade europeia, e mais particularmente a cultura judaico-cristã, recorrendo a figuras reais e acontecimentos históricos. Uma verdadeira obra-prima.


Na obra do autor catalão, Eu confesso, as histórias cruzam-se no tempo e no espaço, fundindo-se umas nas outras: versam sobre as várias formas do Mal, da sua capacidade em passar de um homem para outro, desde a Inquisição até ao franquismo, passando pelo nazismo. É a História da Europa que se tece através de um violino que passa de mãos em mãos, sempre pelas piores razões, normalmente a cobiça.

O narrador Adrià Ardèvol conta a sua infância em Barcelona, com um pai autoritário, quase sempre ausente, que exige do seu filho único que seja poliglota. E uma mãe que tem um único sonho: fazer do seu filho um violonista virtuoso que tocará o violino de Storioni, o rival de Stradivarius, fabricado em Cremona em 1764.

As histórias misturam-se porque quem as escreve, na primeira e na terceira pessoas, sofre de inícios de Alzheimer, um homem superdotado, um intelectual que toda a vida estudou a história das ideias e da cultura e que tem uma capacidade prodigiosa para aprender línguas estrangeiras. Decide, então, escrever uma longa carta à única mulher que amou verdadeiramente, Sara Voltes-Epstein. É, como avisei, também um romance de amor.

Adriá é, assim, uma criança mal-amada e solitária, vítima das ambições desmesuradas dos pais. Através da sua história, são cinco séculos de História que surgem por atalhos e curtos circuitos. Entramos num mosteiro românico perdido nos Pirenéus em plena Inquisição e, sem avisos, estamos no século XX, em Auschwitz, em Birkenau, no Vaticano e num regresso constante a Barcelona. O leitor nunca é guiado nestes caminhos da História, guia-o apenas a consciência de que o Homem não muda e que o Mal, curiosamente, também convive com o amor e com a amizade, mas nunca com o esquecimento.

Adriá diz aos seus estudantes: 
“A realidade das coisas da vida só podem ser decifradas, aproximadamente, com a ajuda da obra de arte, mesmo se ela continua incompreensível”.


Ler para compreender, uma boa aposta.

1 comentário:

  1. Que belo resumo. Confesso que busquei em virtude de alguns detalhes do livro que não compreendi, falta pouco para terminar a leitura do livro, mas o detalhe que descreveu sobre a mistura que o narrador as vezes faz entre 1ª e 2ª pessoa devido ao Alzheimer não havia captado, estava acreditando ser uma forma de aproximar o leitor da história do personagem Ádria. Essa obra tem minúcias agradáveis. Um abraço.

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