O que ficará de nós quando a
memória nos falhar? (Se é que já não nos falha mais do que aquilo que queremos
admitir).
Ironias da vida, Adrià Ardèvol, narrador e personagem principal da
obra Eu confesso, de Jaume Cabré, tem
uma memória prodigiosa, mas é vítima da doença de Alzheimer e só lhe resta a
escrita para não esquecer, para não perder a identidade.
Não deixa de interpelar. É um
aviso para começar a registar tudo? É o medo de perder a memória? Já o fazemos
com a fotografia digital, com o facebook ou outra rede social que acumula de
forma fragmentada momentos vividos com os amigos (para os amigos do Gosto?) e
com a família, com as agendas que corta a vida em pedacinhos e com tudo o que
nos incita, consciente ou inconscientemente, a fixar momentos.
Com a escrita, lidamos menos. Refiro-me
à escrita introspetiva, aquela que nos põe a nu e nos expõe a nós mesmos. Esta
escrita é dolorosa e lenta (não cabe muito bem nos nossos esquemas), mas é
aquela que valerá a pena reler, é aquela que realmente nos fotografa para
sempre, a preto e branco e a cores. Escrever um romance, mesmo não sendo
autobiográfico, é um subterfúgio, uma forma de contornar a perda definitiva da memória,
pois estamos sempre ali, sem falhas ou ausências. A literatura é também como
uma terapia, uma caixa de pandora, mas sem fim trágico porque nela estamos nós
com os nossos demónios e depois saímos dali limpos, revigorados.
Eu confesso mostra que cada vida é um tecido de histórias
entrelaçadas, de lembranças, de laços que passam por homens e mulheres de todas
as épocas.
“Não te fies em mim. Sei que
neste género tão propenso à mentira, como é o das memórias escritas para um
único leitor, tenderei sempre a cair de quatro partas no chão, como os gatos:
mas vou fazer um esforço para não inventar muito. Tudo se passou assim e ainda
pior.”
A obra também tem o mérito de ser
um ensaio sobre a beleza, a arte e reconheci nela todos os tópicos que para mim
elevam um romance ao nível de obra-prima. É uma obra que não se esquece, um
clássico antes do tempo.
Saber que o escritor levou oito
anos a escrever a obra, tantos anos como Mario Vargas Llosa para escrever Conversação na Catedral que,
curiosamente, também cruza tempos e espaços, na voz de um eu desfeito pelo seu passado. Exige do leitor entrega, entrega de
tempo (são mais de 700 páginas, com o toque da folha de bíblia…), entrega de
paciência e de esforço para destrinçar as várias vozes nela presentes, entrega
de si próprio para compreender a genealogia do mal. Passa-se na mesma frase do eu para o ele, do tempo do Nazismo para o tempo da Inquisição, por vezes,
duas personagens dizem o mesmo discurso porque incarnam o mesmo mal. O
inquisidor Nicolau Eimeric (século XIV) veste as roupas de um SS durante a
Segunda Guerra Mundial. No fundo, só mudam os rostos.
Uma leitura vertiginosa! A
recompensa pela entrega é esta sensação de compreender melhor, de saber o
mundo, de saber o Homem.
Também um alerta: somos realmente
o que a memória nos revela?
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