20.3.18

O viajante (parte 2)

No fim do curso, uma porcaria de curso que não servia para nada, era lógico reconhecer que o que acabara por se tornar relevante era a coleção de capitais por onde passara e o homem viajado em que se havia tornado. Quando um conhecido se punha a falar em ir a algum lado não perdia tempo e dizia logo “já lá estive” ou “conheço muito bem” e dava sempre conselhos do género “em Amesterdão tens que ter cuidado com os carteiristas, porque os holandeses andam sempre charrados e são uns larápios dos diabos”, ou “não te aconselho a andar na London Eye porque sai-se de lá com vontade de vomitar”, ou ainda “definitivamente Praga vale muito mais a pena do que Budapeste, mas o que te aconselho a fazer é ires à Croácia porque é um país muito mais autêntico”! 


Depois contava peripécias como daquela vez em que estava tão bem bebido que se pôs aos berros em português com um polaco em Varsóvia a ver se arranjava trocos para o elétrico, e o rapaz desatou a fugir cheio de medo daquela linguagem estrangeira, ou quando encontrou uma pandeireta num canto do jardim e se pôs a cantarolar na Stephenplatz e os turistas lhe encheram um saco de moedas. Curiosamente, era quando as coisas corriam mal que se ganhavam as melhores histórias para contar: um dia, alugou alhures um quarto numa casa velha e veio um temporal tão grande que o barraco foi pelo ar, e ele teve que se firmar às grades da cama até que a calma voltasse; doutra vez, ia todo lampeiro e chispado a conduzir pela direita do aeroporto para o centro de Dublin e, bem, é fácil imaginar os sustos por que passou! Que lorpa! No momento era um caguefe infernal, mas depois quando podia encher o peito e contar como se tinha desenvencilhado de forma tão heroica, acabava com vontade de se meter em sarilhos.


Ulisses arranjou emprego como repositor num hipermercado e passava a vida a esmifrar para garantir que havia dinheiro para colecionar capitais. Metia-lhe um medo tremendo andar de avião e era com uma preocupação enorme que encarava cada nova saída, mas fazia questão de continuar a construir um currículo de viajante, um conhecedor in loco de todos os locais mundiais de que se ouve falar, mas apenas uns quantos privilegiados conhecem realmente. Com um ordenado pequeno era-lhe difícil fazer mais do que uma surtida anual, pelo que rapidamente se apercebeu de que jamais conseguiria atingir o ritmo próprio dos grandes viajantes, daqueles que se podiam gabar de ser “cidadãos do mundo”! Mesmo assim foi a Roma, Atenas e um ano, com enorme sacrifício, não só porque o preço era alto, mas também por causa do medo que tinha da água, meteu-se num cruzeiro (os enjoos quase deram cabo dele) e conheceu, de uma assentada, todas as capitais nórdicas. Em Roma foi-se benzer, deu com um casamento e acabou por se infiltrar na boda a beira do Tibre. Mais tarde, contou como enfardou à larga e os italianos não deram por nada. Aliás, conseguiu manter entretidos até os noivos, enquanto atacava nos salgados, porque a verdade é que o italiano é muito parecido com o português. Era esse tipo de histórias de que mais gostava, embora na maior parte das vezes a história não tivesse sido mais do que sugerida por um acontecimento vulgar. Em Roma foi benzer-se, ponto final! 

to be continued...

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