15.1.17

9300 milhões

Exemplo - A, B e C são proprietários de terrenos vizinhos. 

A decide lotear. 

Z é um investidor imobiliário, recorre à banca, obtém um empréstimo e arremata o loteamento de A quando ainda só existe no papel. Consta-se nas redondezas que os lotes de A foram todos vendidos ainda em projeto e que ali vai nascer uma excelente urbanização, num local idílico a dois passos de tudo. Z loteia e inicia a construção em alguns dos lotes, recorrendo a financiamento bancário. O banco junta as hipotecas ao ativo e aumenta os rácios, os gestores ganham bónus e os acionistas recebem dividendos. 

Os terrenos de B e de C valorizam, impulsionados pela dinâmica do loteamento A. 


Z negoceia com B e compra-lhe o terreno por um valor muito acima dos valores de mercado, numa operação que surpreende toda a gente dado os montantes envolvidos. Ninguém percebe muito bem como é que Z irá conseguir rentabilizar o investimento feito, de modo que a maioria começa a conjeturar acerca das virtudes do local que se tornam cada vez mais espetaculares e apetecíveis: é um sítio maravilhoso, o lugar onde apetece viver, ainda que tenha o senão de estar longe de tudo! Não há dúvida de que Z é um fulano verdadeiramente esperto, um senhor, que já em criança dava mostras de ter olho para o negócio.

Como é evidente, Z compra a B contra uma hipoteca bancária e como, entretanto, constituiu uma empresa imobiliária, arrecada as respetivas comissões. O banco ganha mais uma hipoteca e aumenta os colaterais que lhe permitem constituir novas hipotecas no futuro. Tudo do que o banco precisa é de gente dinâmica como Z. No fim do exercício distribui dividendos, o banqueiro e os bancários arrecadam bónus e os acionistas continuam contentes com a subida das ações. 

B é o único que, curiosamente, não está muito satisfeito: é verdade que, há uns meses atrás, nunca lhe passara pela cabeça que os terrenos do pai valessem tanto, mas agora era tramada aquela sensação de que tinha vendido por tuta e meia ourinho puro sobre a forma de metros quadrados. Claro que tinha dinheiro no bolso, mas o ideal mesmo era que o pudesse investir naquela terra tão boa. 


Entretanto, as casas que começam a nascer no loteamento A vendem-se a bom ritmo, têm todos os apetrechos modernos, videoporteiro e aspiração central, mas, acima de tudo, estão num sítio maravilhoso e a valorização dos terrenos prova que se trata de um ótimo investimento. Z, que como já sabemos é bastante esperto e tem muitos amigos, não teve dificuldade em fazer vendas ainda em projeto por um preço completamente marado a gente endinheirada que gosta do bom que a vida tem para oferecer, mas acima de tudo tem olho para reconhecer bons investimentos. 

É aí que começam a acorrer ao local D, E, F... pessoal da classe média cheios de sonhos de uma vida que valha a pena ser vivida, que gostam de dar umas voltas de carro ao domingo para apreciar umas belas casas e uns ótimos locais para viver. Dão com o loteamento A, pujante e airoso, ponteado de casas potencialmente engraçadas e de lotes de terrenos cheios de cartima. Que casinha com panache se faria naqueles locais, com um jardinzinho para a prole brincar, um escorrega, uma piscina e uma vista para os pinheiros de cortar a respiração. Está um bocado desviado das escolas, dos hospitais e até das padarias, mas isso são detalhes que o automóvel resolve. O que verdadeiramente conta é o sossego e a qualidade de vida. Numa barraquinha na esquina está o funcionário de Z, com a planta do estaleiro onde sobressaem a vermelho as palavras "vendido" e "reservado". Impõe-se ser lesto, o preço é esticadote para o orçamento, mas é evidente que o caso recomenda que se façam sacrifícios, até porque o local está infestado de jovens casais a pesar sonhos dentro dos carritos. Demais a mais, os melhores locais já foram vendidos e, se não andarmos da perna, vamos perder a oportunidade de usufruir de um investimento de gabarito, só ao alcance de quem é verdadeiramente iluminado em matéria de negócios. O funcionário informa que o loteamento B, ali ao lado, avançará em breve, mas os preços já serão outros, não tem nada a ver, aquele local está mesmo em chamas e o mais provável é que seja tudo arrematado pelos tubarões ainda em projeto! D, E, F,... não perdem tempo: os juros estão tão baixos que só um cego não aproveita. O banco faz mais hipotecas, Z enche os bolsos, os banqueiros distribuem prémios e os acionistas andam todos contentes. Os resultados fabulosos do banco abrem telejornais e a subida do imobiliário deixa toda a gente inebriada.


Z negoceia com C e acaba por fechar negócio por um valor estupidamente alto, que garante que o charme da urbanização continuará elevado. O banco empresta! A e B, loucos com o preço ridiculamente baixo por que venderam os  terrenos (os burros!), empatam as economias em lotes e constituem hipotecas junto do banco para construir. O banco empresta! Z está cheio de grampo e não precisa, mas constitui uma hipoteca e loteia C! Entretanto, tornara-se um cliente tão bom que recebe comissões dos prémios que os banqueiros recebem pelos resultados que apresentam, que resultam dos créditos de Z! 


Então, quando menos se espera, surgem notícias de uma crise! 

O país tem que ser resgatado, o FMI regressa, o desemprego sobe, os juros avançam e os compradores desaparecem. 

Como é que aquele sítio tão fraco está com preços tão altos? U, V e X já não dão voltas domingueiras a apreciar casas, preferem um apartamentozinho alugado perto de tudo e poupar dinheiro para fazer turismo. Os lotes de terreno deixam de ter procura e desvalorizam brutalmente, as casas que B estava a construir ficam em esqueleto! As vivendas geminadas que D, E e F compraram são afinal bastante fracas (a começar pela localização), como puderam ser tão cegos, e não valem o esforço! O banco que execute as hipotecas e fique com tudo, sim, vai-lhes custar imenso a todos abdicar, mas é melhor assim, mais vale uma vida simples e tranquila do que morrer de sacrifícios por uma coisa que já não se valoriza. O banco executa tudo a começar pelos lotes que não foram vendidos e pelos últimos terrenos comprados, e fica cheio de calotes que não valem nada e ninguém quer. Z, C e os banqueiros acabam ricos, os bancários são despedidos, os acionistas desatentos ficam sem nada e D, E, F,.... U, V, X, etc. pagam a conta com línguas de palmo.

A isto chama-se especulação e é talvez o principal motivo pelo qual o capitalismo tem má fama. 

Juntem o que se passa no imobiliário ao que sucede em variadíssimas áreas de atividade e talvez consigam começar a perceber como é que a banca portuguesa estaria falida se não fosse a ajuda de cada um de nós. Ainda que nada faça pela vossa natural indignação, talvez vos ajude a perceber por que motivo é possível que o BCP tenha 9300 milhões de calotes, como consta do prospeto do AC. 

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