Ler O fim do homem
soviético - Um tempo de desencanto, de Svetlana Aleksievitch, confirma a
minha convicção de que a literatura supera os livros de História na compreensão
de uma época, pois revela a alma de um povo.
Como explicar que a alma soviética resistiu durante tantas
décadas às vicissitudes do Comunismo marcado por guerras, pela fome, pelo gulag, pelo absurdo e pela morte em nome
de um ideal?
Síntese de literatura documental e literatura de ficção, Svetlana
Aleksievitch, Prémio Nobel de Literatura em 2015, num trabalho de reescrita
admirável, dá voz a homens e mulheres das várias regiões da antiga União
Soviética. Tece uma manta de retalhos, vozes na primeira pessoa, depoimentos
daqueles que viveram durante esse período: mães, soldados, órfãos, generais, intelectuais,
deportados… As vítimas contam como eram denunciadas sem razão, como sobreviveram
aos gulags, como se alimentaram de
raízes e de folhas e como lamberam pedras nas terras geladas da Sibéria para
enganar a fome ou ainda como eram mandadas para a guerra contra os nazis sem
armas e sem agasalhos e denominadas de traidoras do povo se se entregassem ao
inimigo em vez de lutar pela Pátria até a morte. Contam também como eram
amantes da literatura, como se deliciavam a conversar horas nas cozinhas, como
cantavam hinos soviéticos com fé e orgulho. Não compreendem porque foram merecedoras de tanto sofrimento, contudo
nunca questionam as razões do Partido, nunca acusam o pai Estaline, nunca se
revoltam. Foi simplesmente o seu destino, a parte que lhes tocou, à semelhança
de milhares que partilharam o mesmo sofrimento. É preciso reconstruir, mas não
esquecer.
“Tomar o sofrimento nas próprias mãos, dominá-lo
completamente e sair dele, trazer de lá alguma coisa. Isso é uma grande vitória,
só isso faz sentido. Não saímos de mãos vazias… De outro modo, para quê descer
ao inferno?”
Seria bem mais fácil e consolador encarar a História como
uma verdade, a luta entre vítimas e carrascos, mas o drama é que a verdade é
fragmentada, não há fronteira entre o bem o mal; todos participaram no horror,
desde os que denunciaram os vizinhos, os amigos ou mesmo os próprios filhos
àqueles que cumpriram cega e orgulhosamente as ordens de prisão, de tortura e
de morte num mundo em que Deus já não tinha voz porque a voz do Partido era
tudo.
A originalidade da obra está no facto de não haver juízos de
valor, nem acusações; não é um processo e muito menos um mea culpa. Durante o Comunismo os soviéticos acreditavam numa
causa, inebriados pelo orgulho de estar a construir o futuro da humanidade,
tinham como missão mostrar ao mundo o caminho da salvação, libertando-o do
capitalismo bárbaro. Por isso, o sofrimento, as privações, a negação da
individualidade, o sacrifício eram aceites e, pior, legitimados.
(continua)
(continua)
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