27.1.17

O fim do homem soviético (primeira parte)

Ler O fim do homem soviético - Um tempo de desencanto, de Svetlana Aleksievitch, confirma a minha convicção de que a literatura supera os livros de História na compreensão de uma época, pois revela a alma de um povo.

Como explicar que a alma soviética resistiu durante tantas décadas às vicissitudes do Comunismo marcado por guerras, pela fome, pelo gulag, pelo absurdo e pela morte em nome de um ideal?


Síntese de literatura documental e literatura de ficção, Svetlana Aleksievitch, Prémio Nobel de Literatura em 2015, num trabalho de reescrita admirável, dá voz a homens e mulheres das várias regiões da antiga União Soviética. Tece uma manta de retalhos, vozes na primeira pessoa, depoimentos daqueles que viveram durante esse período: mães, soldados, órfãos, generais, intelectuais, deportados… As vítimas contam como eram denunciadas sem razão, como sobreviveram aos gulags, como se alimentaram de raízes e de folhas e como lamberam pedras nas terras geladas da Sibéria para enganar a fome ou ainda como eram mandadas para a guerra contra os nazis sem armas e sem agasalhos e denominadas de traidoras do povo se se entregassem ao inimigo em vez de lutar pela Pátria até a morte. Contam também como eram amantes da literatura, como se deliciavam a conversar horas nas cozinhas, como cantavam hinos soviéticos com fé e orgulho. Não compreendem porque foram merecedoras de tanto sofrimento, contudo nunca questionam as razões do Partido, nunca acusam o pai Estaline, nunca se revoltam. Foi simplesmente o seu destino, a parte que lhes tocou, à semelhança de milhares que partilharam o mesmo sofrimento. É preciso reconstruir, mas não esquecer.

“Tomar o sofrimento nas próprias mãos, dominá-lo completamente e sair dele, trazer de lá alguma coisa. Isso é uma grande vitória, só isso faz sentido. Não saímos de mãos vazias… De outro modo, para quê descer ao inferno?”

Seria bem mais fácil e consolador encarar a História como uma verdade, a luta entre vítimas e carrascos, mas o drama é que a verdade é fragmentada, não há fronteira entre o bem o mal; todos participaram no horror, desde os que denunciaram os vizinhos, os amigos ou mesmo os próprios filhos àqueles que cumpriram cega e orgulhosamente as ordens de prisão, de tortura e de morte num mundo em que Deus já não tinha voz porque a voz do Partido era tudo.

A originalidade da obra está no facto de não haver juízos de valor, nem acusações; não é um processo e muito menos um mea culpa. Durante o Comunismo os soviéticos acreditavam numa causa, inebriados pelo orgulho de estar a construir o futuro da humanidade, tinham como missão mostrar ao mundo o caminho da salvação, libertando-o do capitalismo bárbaro. Por isso, o sofrimento, as privações, a negação da individualidade, o sacrifício eram aceites e, pior, legitimados.

(continua)

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