Na mesma semana em que experimentamos o que é viver com um Donald Trump na Casa Branca, estreou nos cinemas Silêncio, o novo filme de Martin Scorcese. Muitos devem estar já desiludidos com as teorias que profetizavam um amenizar das ideais de trampa quando o homem fosse confrontado com a realidade. E se é verdade que muita da encenação da semana, com assinaturas de decretos presidenciais do cumpridor de promessas em direto na TV, não passaram de puro espetáculo (felizmente a democracia americana tem um sem-número de mecanismos de defesa para evitar cair nas mãos de tresloucados), silêncio foi tudo o que não houve com a passagem à prática das ideias do empreiteiro de Queens.
Para além de, em pouquíssimos dias, ter ameaçado fazer regredir a Humanidade várias ordens de grandeza em direção a uma vivência mais próxima do instintivo e de tornar os EUA um pouco mais parecidos com a Venezuela dos tempos de Chavez e dos decretos presidenciais assinados frente às câmaras, o presidente Trump reafirmou a sua convicção de que a tortura funciona. De acordo com o que desabafou numa entrevista televisiva, agora que tem ao dispor variadíssimas fontes, Trump falou com especialistas na matéria e perguntou-lhes "does it works" e a resposta foi "yes, absolutely!". Negócio fechado!
Trump esclarece que não devemos deixar de lutar com as mesmas armas dos terroristas. Se o Daesh assassina, tortura e faz regredir vastas zonas do planeta à idade média, por que não lutaremos nós com as mesmas armas?
No fundo, Trump, o primitivo, parece assumir que a estratégia dos terroristas do estado islâmico está a resultar e somos nós que os devemos copiar e, no seu instinto, admite que a melhor solução para combater o espírito medieval é tornarmo-nos nós próprios medievais, pois torturar funciona, como bem sabiam os inquisidores e os chefes dos serviços secretos americanos. Em que sentido torturar funciona Trump não nos chega a dizer, talvez na sua infinita sapiência feita de puro instinto ainda não tenha chegado tão longe, mas pensando bem, tampouco os torturadores do Daesh se debruçaram sobre essa questão tão reacionária, pelo que é mais do que legítimo que o imitador americano se dispense de matutar sobre o assunto. It works, folks! Ao povo americano bastará, portanto, o conforto de que, no caminho para o american first tem um presidente disposto a finalmente fazer o que estava à vista de todos que era necessário fazer: tornar-se instintivo, selvagem e... torturador!
A nossa tese é que, em vez de ir ouvir os torturadores profissionais dizerem-lhe que a sua arte funciona (imaginem o que aconteceria se não funcionasse? Get the fuck outta here!), teria sido de mais proveito a Donald Trump ir ao cinema ver Silêncio:
Mas Silêncio não é um filme de ação nem de aventuras onde o herói americano salva a humanidade usando the guts and the balls, nem uma comédia romântica com caras fofas, mamas boas e disponíveis para as mais rematadas traquinices, e era muito provável que mister president caísse no sono ao fim de pouquíssimo tempo ou não percebesse absolutamente nada. Aliás, era tão provável que isso acontecesse que os próprios membros da academia consideraram o filme uma bodega e ignoraram-no olimpicamente na nomeação para os óscares preferindo pôr nos píncaros um musical vintage de que ninguém quererá falar daqui por menos de um ano (aliás, o próprio Scorcese sabia que o filme seria um fracasso comercial e, por isso, passou 30 anos a arranjar arcaboiço para perder dinheiro, sabendo que essa perda era condição sine qua non para fazer algo que verdadeiramente valesse a pena). Mas se, por hipótese académica, Trump fosse ver Silêncio, talvez não precisasse de especialistas em tortura para compreender que a tortura só funciona se estivermos dispostos a assumir que viveremos numa sociedade que está nos antípodas do que são as sociedades ocidentais, onde a ciência e o conhecimento tornaram possível a liberdade, eliminaram a pobreza indigente e fizeram da vida humana um acontecimento maravilhoso e não uma passagem maldita para as delícias do outro mundo!
Ainda que a história do padre Ferreira, o jesuíta apóstata português, que não aguentou a brutal tortura da fossa (tortura japonesa) mais do que seis horas, possa ser um tanto ou quanto ficcionada no filme, em essência ela é verdadeira. Ora, a parte que verdadeiramente conta não é a lengalenga de que Ferreira apostatou para salvar os japoneses cristãos para os quais era ponto assente jamais renegar aquilo em que se acreditava, ainda que estivesse em causa a mais excruciante das mortes ao fim de dias de sofrimento. Essa é a tanga do herói salvador dos seus semelhantes que, se alguma vez existiu na história da humanidade, deve ter sido esquecido como o são sempre os verdadeiramente justos. Aquilo que na verdade nos conta de mais relevante o filme é a parte historicamente verdadeira de como a cobardia de Ferreira foi vista por todos como escandalosa e digna de pena. Não foram poucos os jesuítas portugueses que, depois de tomarem conhecimento da negação do padre Ferreira, abraçaram o projeto de irem ao Japão, correndo mil e um perigos de morte, para tentarem demover o infeliz da decisão de salvar a própria pele neste mundo em detrimento de uma condenação certa no julgamento final. A tortura do padre Ferreira foi pois uma exceção e o facto de ter funcionado constituiu estranheza por décadas e foi motivo de comoção e horror!
Donald Trump não viu o filme, mas tal como todos os demagogos acha que tem a solução para os problemas do mundo à frente dos olhos e, no seu íntimo (terá íntimo?) chega a ficar admirado por os outros idiotas não a estarem a ver! Trump considera-se o maior porque acha que os outros vivem num mundo utópico e imaginário, cheios de teorias intelectuais e delirantes e que conduziram a América à carnificina! O seu projeto é acabar com esse estado de coisas munindo-se, para tal, das mesmíssimas ferramentas que o Daesh ou os japoneses do século XVII considera(va)m tão eficazes! Vai resultar? Sim, se quisermos voltar à idade média e a um tempo de mártires e de banhos de sangue. Ao ouvir Trump falar, por que motivo ficamos com a sensação de que os terroristas que ele eliminará em menos de um mês se aprestam para vencer?!
Não queria ser agoirento, mas era bom termos um crash em Nova Iorque para acabarmos de vez com este filme de terror!
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