23.2.18

O quadrado

O artista que passou da representação do real para a necessidade de interpelar é o alvo principal de "O quadrado", talvez o melhor filme que vi da colheita do ano passado.



Interpelar é um verbo novo (nenhum avô assumiria esse papel, nem se deixaria interpelar), mas, de repente, no século XXI, achamos que temos necessidade de interpelações, de alguém que nos interpele. Talvez a coisa seja ao contrário, talvez cada um de nós seja um artista que representa o papel de interpelar e ache natural ser interpelado. Nas redes sociais, por exemplo, estamos sempre a tentar interpelar e a sentirmo-nos interpelados. A fazer de conta que pasmamos! Por todo o lado, confirma-se A ascensão da insignificância de que Cornelius Castoriadis falava em 1996. A arte perdeu aquela aura de permanência, de busca pelo belo e pelo duradouro, para ser trocada pela instalação que interpela e pelo acontecimento que se torna viral. É verdade que já a Gioconda interpelava e anda a interpelar há mais de 500 anos, mas fazia-o através de uma beleza subtil e enigmática e ninguém conseguirá imaginar o velho da Vinci a explicar o sentido da sua obra nem que vivesse no século XXI.


No livro Sapiens - história breve da humanidade, o autor, o escritor israelita Yuval Harari, avança com a hipótese de o homo sapiens ter assumido um ascendente sobre as restantes espécie do género homo quando começou a acreditar em coisas que não via e não podia verificar. Nenhum macaco, exemplifica, aceitaria trocar a banana que tem na mão por um cacho inteiro que receberia depois de morto! Foi essa capacidade de nos maravilharmos com o que não vemos que criou a coesão necessária a sermos a espécie mais bem sucedida de todas. No fundo é a capacidade de sermos levados na cantiga, comidos por lorpas, enganados por ditadores e embarretados por artistas que nos pretendem interpelar. Mas eu acrescentaria que, sem essa faculdade de crer no impossível, estaríamos condenados a errar inconscientes entre cavernas e buracos a fugir dos leões, agoniados sob o peso da existência. Por falar no assunto, veja-se uma das cenas mais confrangedoras do filme, em que o jantar de mecenas é abrilhantado por um artista que é bom a fazer de macaco:


Não sou perentória em afirmar que será essa a única metáfora contida em O quadrado, filme sueco, vencedor da Palma de Ouro de 2017, nem que terá sido intenção do realizador interpelar-nos nesse sentido. Mas a verdade é que conseguiu-o com uma sátira inteligente e bem humorada. O protagonista é um curador de um museu de Estocolmo, a braços com a gestão das instalações: a necessidade por um lado de garantir o mecenato, e por outro de acolher as obras de arte de artistas que querem e se acham habilitados a interpelar. Evidentemente, no intervalo de tempo em que decorre a ação, tem que lidar, como cada um de nós, com os seus pequenos assuntos pessoais, tendo como pano de fundo, uma Suécia a braços com a novidade de ter de acolher e integrar um grande número de refugiados, e de ter acordado, de repente, para as diferenças sociais e de rendimento.

O filme tem lá tudo o que nós queremos quando vamos ao cinema. A vida do protagonista acaba por levar uma barrela, sendo que desde o início se sente essa tensão entre a vida insignificante que anseia por se tornar viral e aquela que se crê sofisticada mas que se adivinha vazia e desinteressante. Essa tensão que oscila entre a comédia mais refinada e a absoluta tristeza, sempre guiados pela mão firme de um realizador, Ruben Ostlund, que já tinha deixado excelente impressão na obra anterior, Force majeure.

Finalizo com a música que perpassa grande parte do filme: a recriação de Ave Maria de Bach por Bobby McFerrin, o mesmo de Don't worry, be happy, acompanhado pelo violoncelista chinês Yo Yo Ma.


1 comentário:

  1. Eu vi este filme. É, de facto, impressionante, tal como o texto que o apresenta!

    Parabéns por este excelente blogue!!!

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