Como é evidente, a possibilidade de o nosso ourives/banqueiro manter
apenas 10% de reservas relativamente ao valor que tinha depositado no cofre,
colocando os restantes 90% a circular em empréstimos, embora estivesse
alicerçado num registo histórico alargado que garantia alguma segurança, não
era isento de riscos. Claro que se por algum motivo se gerasse medo nos
depositantes, podia ocorrer uma corrida ao cofre e o ourives pura e
simplesmente não teria ouro disponível para satisfazer todos os legítimos
pedidos de quem nele confiou. Nessa altura, na impossibilidade de reaver
imediatamente o ouro que emprestou, seria certa a liquidação do banco e a venda
total do seu património que, mesmo assim, não chegaria para reembolsar todos os
depositantes. O mais provável, portanto, seria que o nosso ourives, a menos que
se pusesse ao fresco, aparecesse morto numa valeta de estrada!
Com o tempo, a própria dinâmica da sociedade levou a que o ouro, a prata
ou as pedras preciosas deixassem de ser as únicas reservas de valor, o que
tornou possível acrescentar ao cofre valores das mais variadas proveniências,
incluindo, como vimos, reservas de própria dívida. Isso deu aos banqueiros a
possibilidade de criar dinheiro (recibos) a partir dos empréstimos que faziam.
Visto com os olhos do nosso ourives/banqueiro, o que acontecia é que, de cada
vez que um depositante se apresentasse para levantar ouro que tinha depositado
no cofre, tudo o que havia a fazer era vender hipotecas que aí estavam e
transforma-las em ouro para entregar ao cliente, uma vez que as hipotecas eram
mercadoria que podia ser transformada em outro valor qualquer!
Claro que, para que as hipotecas fossem realmente uma reserva de valor,
era necessário que estivessem bem avaliadas. Evidentemente, se o banco dizia
que tinha uma hipoteca que valia 1000, mas só a conseguia vender por 100, então
ia ter um problema em satisfazer pedidos de levantamento dos clientes. Para
impedir a sobrevalorização das hipotecas e a correspondente constituição de
reservas fictícias foi sendo desenvolvida legislação regulatória e foram
criadas entidades supervisoras cuja missão era zelar para que não houvesse
risco de desvalorização súbita das reservas do sistema bancário. E durante
muito tempo, o sistema permaneceu sólido e robusto porque havia um equilíbrio
conservador entre reservas e empréstimos.
Nos finais do século XX, toda essa estrutura de regulação começou a ser
desmantelada nos EUA, no mandato do presidente Clinton, porque tornou-se norma
uma ideia liberal de que o mercado se encarregaria de castigar com a falência
quem constituísse reservas insuficientes ou avaliasse por cima as reservas que
possuía e isso seria suficiente para manter o sistema saudável. O processo de
desregulação continuou durante o consolado de Bush filho, numa época que
coincidiu com o boom do mercado
imobiliário e, por volta de 2007, já nenhum banqueiro se preocupava
verdadeiramente com a fiabilidade da avaliação das hipotecas que tinha no
cofre. Nessa altura, a maioria das hipotecas provinha, pois, de crédito a
avaliação, para casas que valiam x, eram vendidas por 3x e avaliadas por 5x,
aumentando de forma automática a reserva do banco em 5x tendo por colateral
real x. Cedo se perceberia que as reservas estavam inacreditavelmente
sobreavaliadas. E o pior foi que todos entraram em pânico quando compreenderam
que não estavam ao abrigo das péssimas reservas de todos os outros. No fundo
foi como se o ourives tivesse descoberto que tinha armazenado ouro no cofre que
subitamente ganhara ferrugem, ao mesmo tempo que se apercebeu de que o ouro que
ele próprio tinha depositado em cofres de concorrentes também podia ter sido
misturado com ferro!
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