História nº 1 (oitava parte)
Claro que no século XX, já ninguém vê nas notas
que leva na carteira recibos que o banco está obrigado a converter em ouro. De
facto, tanto o dinheiro como o metal precioso tornaram-se mercadorias cujo
valor relativo é assegurado pela velhíssima lei da oferta e da procura, como
sucede, aliás, com tudo quanto existe. E isso sucede até com as dívidas, que acabaram por ser transformadas em
mercadoria, já que têm também um valor relativo, podendo ser transacionadas no
mercado através de títulos (titularização das dívidas). Trata-se de uma ideia não tem nada de especial e aplica-se frequentemente no nosso dia-a-dia.
Imaginem que o vosso amigo Amílcar (bem sabemos
que não têm um amigo chamado Amílcar, mas vamos fazer de conta que têm) vos
pede emprestado 1000 €, por um prazo de 5 anos, comprometendo-se a pagar 10% de
juros ao ano: no final de cada ano recebem 100€ do Amílcar, e ao completar o
quinto ano irão receber 1100€.
Acontece que, logo depois de receberem a segunda
prestação de juros, vem a notícia de que o Amílcar tem as contas lá de casa no
vermelho e já nem paga luz, nem água e corre o risco de ser despejado. Vocês
ficam aflitos, a ver a vossa vida andar para trás, com medo de que o Amílcar,
não só deixe de pagar os juros, como renegue o empréstimo.
É nesta altura que entra em cena o Zeferino,
que é um indivíduo que não se importa de arriscar, desde que esteja em causa
uma pechincha. O Zeferino propõe-se comprar-vos a dívida do Amílcar, caso vocês
estejam dispostos a fazer um desconto. No fim, lá chegam a acordo e o Zeferino
entrega-vos 500€, assumindo a titularidade da dívida.
É evidente que para vós, o negócio foi uma
caca. Receberam 200€ de juros mais os 500€ que o Zeferino pagou pela dívida: 700€,
ao fim de 2 anos, em troca de terem dado 1000€. Perderam dinheiro mas, pelo
menos, o negócio de venda da dívida livrou-vos de perdas maiores. A dívida foi
uma mercadoria que puderam transacionar.
Para o Zeferino, se as coisas correrem bem,
pode ser um negócio muito interessante. Paga 500€ à cabeça, mas pode receber 1300€ (300€
de juros mais 1000€ da liquidação). Incrivelmente, uma taxa de juro inicial de
10% transformou-se numa taxa anual de 53%. A desvalorização da dívida do
Amílcar, por ele estar a passar por dificuldades, traduziu-se num aumento da
taxa de juro dos seus títulos. Da próxima vez que o Amílcar tiver que pedir
emprestado, já é bem capaz de não chegar 10% do empréstimo para o serviço de dívida.
Mas é possível que a coisa ainda sofra um outro
volte-face. Imaginem que, ao fim de mais um ano, o Amílcar ganha o euromilhões
e resolve liquidar todas as dívidas de uma só vez. O Zeferino receberá 1100€
para liquidar uma dívida de 500€. A taxa de juro passou para 120% ao ano.
Grande negócio!
Na verdade, pois, a dívida
sempre foi uma mercadoria transacionável e sujeita às regras da convivência em
sociedade. O que acabou por tornar o processo insólito foi a possibilidade de a dívida, por si só, permitir fazer dinheiro. Mas disso falaremos no próximo episódio.
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