20.8.16

Histórias de dinheiro

História nº 1 (décima parte)

Como é evidente, a possibilidade de o nosso ourives/banqueiro manter apenas 10% de reservas relativamente ao valor que tinha depositado no cofre, colocando os restantes 90% a circular em empréstimos, embora estivesse alicerçado num registo histórico alargado que garantia alguma segurança, não era isento de riscos. Claro que se por algum motivo se gerasse medo nos depositantes, podia ocorrer uma corrida ao cofre e o ourives pura e simplesmente não teria ouro disponível para satisfazer todos os legítimos pedidos de quem nele confiou. Nessa altura, na impossibilidade de reaver imediatamente o ouro que emprestou, seria certa a liquidação do banco e a venda total do seu património que, mesmo assim, não chegaria para reembolsar todos os arrendatários do cofre. O mais provável, portanto, seria que o nosso ourives, a menos que se pusesse ao fresco, aparecesse morto numa valeta de estrada!

Com o tempo, a própria dinâmica da sociedade levou a que o ouro, a prata ou as pedras preciosas deixassem de ser as únicas reservas de valor, o que tornou possível acrescentar ao cofre valores das mais variadas proveniências, incluindo, como vimos, reservas de própria dívida. Isso deu aos banqueiros a possibilidade de criar dinheiro (recibos) a partir dos empréstimos que faziam. Visto com os olhos do nosso ourives/banqueiro, o que acontecia é que, de cada vez que um depositante se apresentasse para levantar ouro que tinha depositado no cofre, tudo o que havia a fazer era vender hipotecas que aí estavam e transforma-las em ouro para entregar ao cliente, uma vez que as hipotecas eram mercadoria que podia ser transformada em outro valor qualquer!

Claro que, para que as hipotecas fossem realmente uma reserva de valor, era necessário que estivessem bem avaliadas. Evidentemente, se o banco dizia que tinha uma hipoteca que valia 1000, mas só a conseguia vender por 100, então ia ter um problema em satisfazer pedidos de levantamento dos clientes. Para impedir a sobrevalorização das hipotecas e a correspondente constituição de reservas fictícias foi sendo desenvolvida legislação regulatória e foram criadas entidades supervisoras cuja missão era zelar para que não houvesse risco de desvalorização súbita das reservas do sistema bancário. E durante muito tempo, o sistema permaneceu sólido e robusto porque havia um equilíbrio conservador entre reservas e empréstimos.

Nos finais do século XX, toda essa estrutura de regulação começou a ser desmantelada nos EUA, no mandato do presidente Clinton, porque tornou-se norma uma ideia liberal de que o mercado se encarregaria de castigar com a falência quem constituísse reservas insuficientes ou avaliasse por cima as reservas que possuía e isso seria suficiente para manter o sistema saudável. O processo de desregulação continuou durante o consolado de Bush filho, numa época que coincidiu com o boom do mercado imobiliário e, por volta de 2007, já nenhum banqueiro se preocupava verdadeiramente com a fiabilidade da avaliação das hipotecas que tinha no cofre. Nessa altura, a maioria das hipotecas provinha, pois, de crédito a avaliação, para casas que valiam x, eram vendidas por 3x e avaliadas por 5x, aumentando de forma automática as reservas do banco em 5x tendo por colateral real x (permitindo ao banco fazer novos empréstimos numa espiral verdadeiramente louca e imparável). 

Cedo se perceberia que as reservas estavam inacreditavelmente sobreavaliadas. E o pior foi que todos entraram em pânico quando compreenderam que não estavam ao abrigo das péssimas reservas dos todos os outros. No fundo foi como se o ourives tivesse descoberto que tinha armazenado ouro no cofre que subitamente ganhara ferrugem, ao mesmo tempo que se apercebeu de que o ouro que ele próprio tinha depositado em cofres de concorrentes também podia ter sido confundido com ferro!

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