28.8.16

São Petersburgo

O meu fascínio pela Rússia vem-me da fase final da minha adolescência e da leitura dos clássicos de Dostoiévski, Tolstói e outros e é pela cidade de Pedro o Grande, até mais do que por Moscovo, que me sentia particularmente atraído desde os tempos em tomei conhecimento das desventuras de Raskólnikov nas margens do Neva.

Dostoiévski percorreu estas ruas e era ele próprio um apaixonado pela cidade, embora tivesse nascido em Moscovo. Todas as casas em que morou eram alugadas e tinham que obedecer à condição de apresentarem vista para uma igreja, panca que talvez remontasse ao tempos em que, com menos de 30 anos, foi preso e enjaulado na fortaleza de Pedro e Paulo acusado de atividades conspirativas. Condenado à morte, viu a pena ser comutada em degredo na Sibéria quando já estava atado ao poste diante do pelotão de fuzilamento, e numa altura em que já tinha acertado com os companheiros de infortúnio o encontro com Cristo!


O túmulo de Dostoiévski fica no Mosteiro de Alexander Nevsky, ao topo da Nevsky Prospekt, talvez a rua mais famosa de São Petersburgo, 5 quilómetros que partem do Neva e abundam em lojas e locais de jogo!





Cá em baixo temos a praça do palácio de inverno e os restantes edifícios do Hermitage, para além dos principais canais da cidade. No tempo do fundador, as pontes foram proibidas por questões defensivas e todos os palácios que a elite ia sendo obrigada a construir dispunham de barco para atravessar os pântanos, mas hoje em dia as pontes são imensas e além da função a que se destinam têm, tal como as estações de metro, uma função estética que o russo muito preza.






É por aqui que fica a catedral de S. Isaac e a não menos impressionante Igreja do Sangue Derramado, erguida no local onde foi mortalmente ferido Alexandre II, o czar que acabou com a servidão e libertou os mujiques.



A meio da Nevski Prospekt é de todo recomendável fazer uma visita ao Bolshoi Gostiny Dvor, um dos mais antigos centros comerciais do mundo (tem mais de 300 anos) e que depois da destruição da Segunda Guerra, preserva hoje muito do arranjo logista, da atmosfera e da arquitetura dos tempos de Estaline. Os russos consideram as mercadorias à venda demasiado caras, e nota-se que o sítio tem sofrido de alguma decadência, mas uma volta ao retângulo do edifício transporta-nos para um ambiente kitsch que só nestas paragens podemos experimentar.


A Rússia padece de um problema populacional. Os russos morrem demasiado jovens intoxicados pelo tabaco e pela bebida (ver um russo fumar e engolir um cigarro em menos de meio minuto é uma experiência de desprezo pela vida que mede meças aos artistas do poço da morte). Na Rússia de hoje, explicaram-nos, a juventude quer trabalhar o mínimo possível e aposta tudo em fazer o máximo de dinheiro no mínimo de tempo com zero esforço, deixando as tarefas pesadas para os imigrantes das ex-repúblicas soviéticas que tiveram a independência mas não são independentes (veja-se como os crimeanos acolheram de braços abertos os homens de Putin). Quanto aos velhos, esses morrem de saudades dos tempos anteriores à Perestroika em que o estado providenciava o espaço vital de cada um: comida, roupa e habitação (à razão de 20 metros quadrados por cabeça), ainda que muitas vezes a casa custasse quinze anos de espera. Hoje em dia os preços da habitação são incomportáveis, a aflição com as gerações mais novas que só arranjam emprego mal pago (a taxa de desemprego na cidade é de 5%) e o escândalo dos oligarcas (corrupção às claras impossível nos tempos de Brejnev ou Khrushchov) trazem os mais idosos desgostosos e desiludidos com o capitalismo onde tudo se compra e até o artigo mais comezinho tem um preço. 

Em São Petersburgo ninguém anda de bicicleta por causa do frio e da falta de hábito e o pessoal enche as ruas de carros de tal forma que em horas de ponta é norma ficar muito tempo encravado. O russo tem que ter o ego permanentemente alimentado (nas fronteiras, p.e., há todo um cerimonial que pode levar a pressupor que a mãe Rússia é a terra mais apetecida do mundo e tem de ser protegida de imigrantes furiosos), mas ao mesmo tempo tudo suporta com abnegação e espírito patriota. Nesse particular, nada mudou desde o tempo dos grandes mestres da literatura, e o russo dos nossos dias vive, também como nos tempos do comunismo, obcecado com os papéis que o documentem e pronto a todos os sacrifícios que os governantes considerem necessários.


Depois das voltas pela cidade, ainda tivemos tempo de ir a Tsarkoye Selo, visitar o palácio de inverno de Catarina I. A riqueza do palácio era de tal ordem que os russos ainda só conseguiram recuperar o exterior e algumas das principais salas do interior depois de o edifício ter serviço de aquartelamento nazi durante o cerco de São Petersburgo (os aposentos reais, p.e., ainda não estão recuperados). A viagem até ao monumento, pelos arredores da grande cidade acaba, estamos em crer, por ser mais enriquecedora do que a visita propriamente dita (acabamos mesmo por ser premiados com a célebre cena em que o condutor russo sai do carro no meio da chuva e vai-se pegar com um vizinho que lhe apitou e depois regressam ambos às respetivas viaturas satisfeitos por terem trocado insultos, ameaças e, finalmente, um par de estalos). O prédio tem as salas quase vazias e conseguimos apenas uma pálida sensação do que deve ter sido percorrer aqueles salões nos tempos do império e aguardar para ser recebido por sua alteza nas salas de espera. Nesse particular, recomendamo-vos a visita ao nosso palácio nacional da Ajuda para que percebam como é possível imergir completamente na atmosfera daqueles tempos de reis e vassalos e compreendam a nossa desilusão com a oferta russa.





Nas esquinas das salas há lareiras alimentadas a partir do interior pelos espiões que ouviam as conversas dos súbditos que aguardavam para serem recebidos.


Com os seus 5 milhões de habitantes, as extensas avenidas largas (prospekt), as centenas de palácios, as obras enormes na zona do novo estádio (a ser construído para o mundial de futebol), a alta taxa de crime, designadamente assaltos, as marchas de militares da marinha pelas ruas, os canais e o Neva, as lojas que não perderam uma certa atmosfera de outros tempos e o ritmo avassalador da vida quotidiana, São Petersburgo mantém um charme bastante sedutor, ao mesmo tempo que ainda se conseguem identificar muitas das características que moldaram a alma russa que nos apresentam os livros dos velhos mestres da literatura.

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