Conversas exemplares 2
Dinheiro e
Liberdade
O meu amigo Tavares defende que esta crise em que estamos
atolados se deve exclusivamente ao facto de a maior parte de nós ter esquecido para
que serve o dinheiro. Exclusivamente parece-me forte, mas o Tavares insiste. O
raciocínio dele labora na ideia de que, ao contrário das outras mercadorias,
que servem para satisfazer as nossas necessidades ou caprichos, a função mais
importante do dinheiro é dar-nos liberdade. E eu, que pensava que o dinheiro
servia para comprar as coisas de que necessitamos, dou por mim banzado enquanto
o oiço, pois faz-me uma certa impressão essa associação entre numerário e
liberdade como se o 25 de abril tivesse alguma coisa a ver com os escudos que
cada um tinha na algibeira.
Mas o meu amigo não desarma e estipula que durante
trinta e tal anos perdemos mesmo a noção do que é o dinheiro. Oiço o Tavares e
ponho-me a pensar no meu avô e nas histórias que ele me contava de uma época em
que as poucas pessoas que iam conseguindo juntar dinheiro ou sabiam
rigorosamente o que fazer com ele ou, então, o curso normal dos acontecimentos
encarregava-se de que deixassem de o ter em três tempos. E a verdade é que
tanto quanto me lembro dessas histórias, a diferença entre ter ou não ter
dinheiro nunca esteve em ser feliz ou infeliz, mas em garantir que se era
livre, não no sentido que se dá agora de se poder dizer ou fazer o que nos der
na real gana, mas antes num contexto mais realista e racional de não depender
de nada nem de ninguém. E à medida que vou recordando essas histórias do meu avô,
que saudades, volta-me essa sensação de imaginar como é difícil a vida, cheia
de riscos e de sacrifícios, por causa do dinheiro que devemos tratar com respeito
e parcimónia (mas nunca com subserviência) para que chegue o dia em que, de
certa forma, nos torne livres. De maneira que, a dada altura, dou de barato que
foi, de facto, esse conhecimento que se perdeu em pouquíssimo tempo que nos
minou a liberdade que julgáramos ter conquistado com uma revolução e cravos ao
peito.
Mas até aqui talvez já toda a gente tenha chegado e eu por último.
O
Tavares, que é meu amigo, encarrega-se de me instruir com exemplos concretos.
Um supor que te põem no olho da rua e ficas sem salário, qual é o problema se
tens dinheiro para suprir às tuas necessidades? E mesmo que tenhas pouco
dinheiro, qual é o problema se souberes como o multiplicar e não tiveres medo
de o fazer?
Mas a mim, enfarinhado como estou numa lógica de consumo, volta-me
uma certa impressão de que, afinal de contas, isto não pode ser ao mesmo tempo
tão simples, tão complicado e tão fora de moda. Não foi à toa que toda essa
arte da poupança e do investimento se desvaneceu e julgávamos esquecida para
sempre, porque não é com ordenados mínimos que te vai valer a pena poupar para
prevenir o que quer que seja, de maneira que a solução óbvia está em estourar o
guito todo de uma vez e pelo menos contribuir para que alguém venda mais e
possa haver mais emprego. Isto parece-me de uma racionalidade muito saudável e
a toda a prova. Ainda por cima, ao encher a casa de trastes e ao atualizares
ritmadamente a quota que te cabe de gadgets inúteis vais assegurando a tua dose
diária de felicidade instantânea, ao mesmo tempo que evitas ter o dinheiro
parado no banco, ao serviço de um punhado de indivíduos pouco recomendáveis que
se serve dele para fazer investimentos super lucrativos.
Vendo que vacilo, o
bom do Tavares muda de tática e envereda por um percurso histórico. Com o fim
da escassez, conta ele, depois da revolução industrial, houve necessidade de
criar uma dinâmica de consumo que permitisse rentabilizar o excesso de
produção, ao mesmo tempo que mantinha ocupada a massa trabalhadora que de outra
forma se tornaria supérflua com o surto da maquinaria. Veio, assim, aquilo que
designamos por consumismo: a arte de tornar indispensável o que nunca nos fez
falta, mas que alguém se predispôs a produzir e é necessário escoar. Não foi
uma coisa pensada, como é óbvio, embora há mais de duzentos anos já fosse
evidente que a oferta cria a sua própria
procura. Com o passar do tempo, que é o escultor das sociedades, viemos ter
a esta época em que ou tu te tornas fugral e usas o dinheiro para investir e
tentar ficar livre ou trocas o dinheiro por mercadoria que não falta mas que
acabará por te acorrentar e dar cabo do canastro. O mal da primeira opção é que
dá muito mais chatices e menos alegria instantânea, sendo totalmente
desadequada a exibicionistas.
Agora é fácil falar, mas houve gente que ao longo
de mais de trinta anos andou a poupar e a investir as poupanças para nos
financiar o consumo. Para fim de conversa com o Tavares, reconheço que, ao não
saber lidar com o dinheiro, nos pusemos coletivamente do lado dos que não são
livres.
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