Conversas exemplares
O meu amigo Américo é um ás da bolsa. Há tempos trazia em
carteira cem barris de petróleo bruto, títulos de propriedades no extremo
oriente, mil alqueires de trigo, um sortido de ações do PSI20 e ainda estava
curto no par iene/dólar. Passado uns dias já se tinha virado para os metais,
para a biotecnologia e para a dívida pública portuguesa. Para o Américo todos
os movimentos de compra e venda obedecem sempre a uma ponderação racional/emocional
que se enquadra em requisitos pré-estabelecidos. Há duas grandes forças que
movem o ser humano, estipula ele entre duas goladas de cerveja, são elas o medo
e a ganância. Nos mercados financeiros, tu não queres saber da utilidade dos
produtos que compras, nem te interessa se eles estão caros ou baratos, nem dos
afazeres dos produtores ou dos desejos dos consumidores. Também te estás a marimbar
para as canseiras, para o suor, para os problemas e os conflitos dos
indivíduos, embora te interessem, obviamente, todos os acontecimentos geradores
de incerteza. No final, a única coisa que conta é se vendes mais caro do que
compraste. Se não tens e o preço sobe ataca a ganância e ficas a salivar, se
tens e o preço desce acagaças-te todo e começas a ficar com suores frios. Na
maior parte das vezes olhas para o espelho e viras-te para ti próprio e dizes,
bolas, meu caro, és um burro do caraças, não tens e devias ter comprado,
ficaste com aquilo e devias ter entregue a outro mais burro que tu, compraste
bem, mas devias ter comprado mais, vendeste, mas foi demasiado tarde e, assim
por diante, até ao dia em que já não te importas com o teu ar de jerico. Mas a
lição não se fica por aqui e o meu amigo, embalado como está, tem mais com que
nos instruir. Nos mercados não é importante que acertes sempre, nem sequer que
acertes a maior parte das vezes. No mercado, o mais importante é identificar o
erro e eliminá-lo rapidamente. O erro deve-se, na maior parte das vezes, à
tremenda inconstância do ser humano, mas também à imparável sucessão dos
acontecimentos. E o mercado está tão inquinado de erros que o que agora é ótimo
daqui por cinco minutos vira para péssimo. Na prática, nunca é tarde para
comprar se a tendência for ascendente, mas, se vires o caso mal parado, põe-te
a milhas e preserva o capital. E continuou neste estilo sentencial até que se
nos acabaram os tremoços. Nisto, o Américo é muito diferente do meu outro amigo
que joga na bolsa. O Aníbal está sempre certo, mesmo que à primeira vista não
pareça. Nos mercados, a minha postura é a seguinte, diz-me ele, compro o que
acho que vai subir e se a coisa der para torto e começar a descer aguento
firme, pois tu só perdes dinheiro no dia em que vendes mais barato do que
compraste. No limite, o que posso fazer é comprar mais para baixar o preço
médio e, enquanto tiver dinheiro, vou comprando por aí abaixo. Esta solução tem
o defeito de se tornar inevitável que acabes por te entalar e já sucedeu ficar
com o graveto empatado uns bons pares de anos à espera que o mercado acabasse
por reconhecer como eu tinha razão. A verdade, acaba por assumir o bom do
Aníbal, é que neste momento tenho um lote de papéis do BCP que ou uso para
forrar paredes ou deixo de herança aos bisnetos. E, bem vês, isto não mata, mas
dá-nos um bocado cabo das noites. Na minha ideia, esta postura faz do Aníbal um
verdadeiro investidor, ao passo que o outro será mais um especulador do estilo
capitalista americano. Das diferentes táticas dos meus dois amigos, eu que de
negócios nada percebo, e me enquadro com orgulho na imensa massa trabalhadora
que goza com justeza o feriado do primeiro de maio, diria que ilustram uma
parte do dilema que nos é colocado pelo funcionamento do nosso cérebro. E isto,
pelo menos por hoje, é o que me interessa verdadeiramente. Nós estamos sempre a
trabalhar para acertar a maior parte das vezes e sentimos uma grande desilusão
quando falhamos. Fazem-nos crer que nunca devemos ter apenas opiniões, mas
antes convicções sólidas como aço, inabaláveis e completamente à prova de
influências externas e quem hoje diz uma coisa e amanhã muda de opinião ou é
cata-vento ou vigarista. Formataram-nos a partir do interior para achar que
sobre todos os assuntos há uma palavra justa a ser dita, em todos os trabalhos
há uma forma certa de proceder e que, embora a perfeição seja inatingível, com
suor e talento chegaremos ao ponto em que só falhamos por exceção. Nesse
sentido, estamos sempre em crer que assumir erros é sinal de fraqueza e
desfazer o que julgávamos bem feito resulta de desnorte. Mas o verdadeiro drama
é que o meu amigo que não hesita em se considerar equivocado corre tanto risco
de se enganar como o outro que nunca dá o braço a torcer. Claro que a realidade
aumentada dos mercados de capitais, de que os meus amigos são especialistas,
com o seu brutal sobe e desce e tremenda arbitrariedade, não se aplica linearmente
à nossa vida do dia a dia. Felizmente, digo eu. Mas cada vez mais o nosso lado
racional se confunde com o emocional num conjunto de micro decisões que acabam
por afetar de forma muito notória a nossa qualidade de vida individual. E, usando
linguagem de comentador, eu não tenho a certeza se isto é conjuntural ou
estrutural.
O que vale é que a minha fase de Aníbal, foi a um ano de inversão de um longa fase Market no BCP.
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